Um problema e uma nova visão da vida
Este era eu, normal e saudável, em uma confraternização, no finalzinho de dezembro de 1989.
Minha visão sobre deficiência começaria a mudar drasticamente em 22 de junho de 1990. Era uma sexta-feira fria. Eu acordei na madrugada, sentia frio, sentia também a cabeça girando, pensei que o jantar fizera mal, então me dei conta que não sentia nada, do pescoço para baixo, me apavorei, achei que não mexeria mais braços e pernas, dei um salto da cama. Fiquei sentado na cama, perplexo, tentando entender o que teria ocorrido, tentei acender a luz, mas, sem sentir as mãos, tudo que fiz foi derrubar o abajur e acordar minha esposa. O dia seguinte foi ainda pior, eu perdi completamente o equilíbrio, tive redução na coordenação dos movimentos das mãos e braços e redução de mobilidade dos membros inferiores.
Os meses que seguiram, foram o pior pesadelo de um ser humano, me afastei do serviço, me afastei da direção do carro, começando assim o processo terrível de depender dos outros. Fiz toda uma sorte de exames, de sangue, radiografia, eletro miografia, tomografia, tudo o que existia de mais novo, passei por médicos e juntas médicas, sem ter um diagnóstico. No final, acabei submetido a uma bateria violenta de corticóides e um interminável programa de fisioterapia.
Foi nesta fase que eu comecei a conhecer um outro Brasil, um Brasil exclusivo, um Brasil cruel, um Brasil indiferente. As seções de fisioterapia eram de difícil marcação dada a demanda, e lá, eu tinha contato com muitas pessoas, vítimas de acidentes de trânsito, de trabalho, domésticos, com toda a gama de problemas de locomoção e movimentação. A clínica que eu utilizava ficava em uma casa adaptada, mas, não havia qualquer preocupação com a acessibilidade, não havia nem facilidade em se estacionar na porta da clínica, eu ficava atônito em ver o sofrimento dos cadeirantes para acessarem ao interior da clínica, haviam usuários de muletas e amputados. Era um mundo novo para mim, das treze clínicas disponíveis pelo meu plano médico, eu apenas consegui vaga em uma, as demais estavam lotadas por longa data.
Em minha cabeça lógica de engenheiro, eu começo a calcular, pelo número de problemas graves que vi na clínica, pelo número de clínicas e pelo número de planos médicos existentes, sem contar que a grande maioria do povo tenha que recorrer ao sistema publico de saúde, o número de deficientes no Brasil deveria ser muito maior que eu podia imaginar.
O Brasil tem anualmente um número de baixas equivalente ao da guerra do Vietnam só em acidentes de trânsito, e os feridos nestes acidentes? O Brasil apesar de não estar em guerra tem um número de ferimentos por fuzil maior do que a faixa de Gaza, este tipo de arma quando não mata mutila, é projetada para isso, onde estão estes feridos? E os acidentes domésticos? E os acidentes de trabalho? E os deficientes de nascença? Onde estão nossos deficientes que eu nunca os vi em 29 anos de vida?
Na realidade a explicação é bem simples, enquanto eu vivia meu drama pessoal, tudo o que eu não queria era ser visto pelos outros, conhecidos ou não, eu tinha vergonha de não conseguir segurar as coisas na frente dos outros, tinha vergonha de cair nas calçadas ruins da cidade. Embora o Brasil não seja um campeão em bullying, ele é o país do pejorativo, basta ter um loiro na classe para ser chamado de “alemão”, um oriental é “japa” ou “china”, um negro é “neguinho” ou “negão”, alguém do oriente médio é “turco”. Não existe propriamente “racismo” nisso, é o jeito brasileiro, da mesma forma, quem tem alguma deficiência auditiva é o “surdinho”, visual é o “ceguinho”, aquele mais robusto é o “gordinho”. Acontece que sendo nosso jeito ou não, estes adjetivos são segregadores e preconconceituosos e quando aplicado a deficientes, são ofensivos e de mau gosto.
Quando você faz graça de uma situação ou fato cotidiano, você faz uma piada, mas, quando você faz graça da deficiência de uma pessoa, você faz uma maldade e o número de pessoas sem noção que fazem isso é muito grande.
Ninguém gosta de ver sua deficiência exposta, muito menos de ser debochado por sua deficiência e pergunto, qual pai gostaria de ver seu filho debochado, humilhado?
A mais triste realidade é que o Brasil escondia seus deficientes, os colocava a margem da sociedade, não lhes oferecia chance ou oportunidade. E quem adquire uma deficiência tem vergonha de se apresentar, pois, sabe bem o que o espera lá fora. Reclamar? Reivindicar? O que? Para quem?
Eu retornei ao serviço, depois de reaprender coisas muito simples como, andar e segurar as coisa, escrever, o básico, mas, estava muito longe de estar recuperado, porém, dado ao treinamento a que me obriguei, eu conseguia enganar bem. Evitava segurar as coisas com a mão direita na frente dos outros, pensava muito antes de dar um simples passo, escolhia bem o caminho a fazer, o mais difícil mesmo era o cansaço.
Este era eu, abalado pela doença, deformado por três meses de doses maciças de cortisona, em outubro de 1990, retornando ao serviço.
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