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sábado, 7 de setembro de 2013

Hipercolesterolemia Familiar Homozigótica

Hipercolesterolemia  Familiar  Homozigótica 

A Hipercolesterolemia comum ocorre por motivos exógenos, isto é o individuo que possui uma dieta inadequada e que consuma alimentos ricos em gorduras trans e gorduras saturadas, tabagismo, sedentarismo e alcoolismo. Nesse caso para o individuo se tratar basta uma mudança de hábitos alimentares com ingestão de frutas, legumes e verduras além de alimentos ricos em fibras e o auxilio de exercícios físicos.
Porém, nem tudo é tão simples assim, pois além da hipercolesterolemia comum existe também a hipercolesterolemia familiar que nesse caso a formação, metabolização e "destruição" do colesterol pelo organismo são deficientes. Assim, mesmo que a pessoa seja atleta, com dieta adequada e sem outras doenças, ela pode ter níveis elevados de colesterol. Existe um defeito na capacidade das LDL se ligarem aos receptores, e não há inibição por “feed-back” da síntese de colesterol.
A Hipercolesterolemia familiar pode ser homozigótica aonde há a ausência total dos receptores de LDL ou heterozigótica aonde o individuo possui metade dos receptores de LDL. A HF homozigótica felizmente é mais rara, tem prevalência de 1 em 1 milhão de indivíduos e valores de LDL-Colesterol acima de 600 mg/dl, além da presença de aterosclerose precoce, com acometimento cardiovascular já na infância e na forma heterozigótica os níveis de LDL-colesterol plasmático se situam, geralmente entre 200 mg/dl e 400 mg/dl, esses desenvolvem comumente doenças cardíacas antes de atingirem a meia-idade.
O mecanismo da HF tem a absorção celular de LDL e IDL comprometidas econsequentemente o aumento da concentração plasmática dos dois. Quando o LDL se liga aos receptores de LDL na célula, a partícula de LDL é internalizada na célula por uma estrutura especializada chamada depressão revestida e dessa maneira o LDL se degrada em colesterol livre, que é um importante sinal regulador intracelular que resulta numa diminuição de ingestão celular do colesterol exógeno. Em heterozigotos que possuem função anormal dos receptores de LDL, o sinal para limitar a ingestão de colesterol exógeno ainda é recebido, mas apenas em altos níveis de LDL. O que acontece é que esses indivíduos possuem um mecanismo homeostático qualitativamente normal, mas que funciona apenas em altos níveis de LDL e colesterol, é por isso que a chance de ocorrerem outras doenças cardíacas é muito grande, a HF pode contribuir para a desfunção endotelial que é um passo importante para o processo de aterosclerose


Uma das formas de manifestação das hipercolesterolemias são os xantomas, formados em uma tentativa natural do organismo de se proteger contra o acúmulo de LDL, dessa forma os macrófagos fagocitam a gordura depositada nos tecidos. No entanto, os macrófagos não conseguem eliminar completamente os lipídios, como fazem com microrganismos, e se transformam em células cheias de gordura, que, por não terem para onde ir, se acumulam e  se infiltram sob a superfície da pele.



Para o Tratamento de HF além de restrições alimentares diminuindo o colesterol exógeno é necessário o uso de algumas armas químicas contra o colesterol como as estatinas, um exemplo é a Lovastatina que pode reduzir em até 50% os níveis de colesterol.

Lovastatina

Ácido Nicotínico (Vitamina B3) também é bem vindo para o tratamento de hipercolesterolemia, pois ele é capaz de diminuir a concentração de VLDL, o que acaba por reduzir a concentração de LDL e aumentar a concentração de HDL. O uso de “seqüestradores” de ácido biliar é outra forma de tratamento bastante eficaz que são resinas de troca iônica. Como o colesterol é o precursor dos sais biliares e, quantitativamente, esta conversão é a mais importante via de excreção do colesterol nos mamíferos. Os sais biliares são sintetizados pelo fígado e secretados no duodeno, onde atuam como agentes emulsificantes dos lipídeos, importante para a absorção destes, mas também são essenciais para a solubilização do material lipídico hidrolisado (formação de micelas) crucial para a absorção. Um eficiente sistema de reciclagem desses sais propicia o seu retorno ao fígado (cerca de 95%). Essa reciclagem pode ser quebrada pela utilização dos “sequestradores”  (resina+ Cl-  a qual troca  Cl- por sais biliares-), colestiramina ou hidrocloreto de colestipol, e assim mais colesterol do fígado e das LDL é desviado para produzir um complexo resina-sal biliar não absorvivel que é facilmente eliminado nas fezes.
Na dieta é importante fazer misturas de fibras e proteínas, conduzindo o aumento do catabolismo do colesterol. O mecanismo dessa ação é que as fibras ligam-se aos ácidos biliares, levando assim a um aumento na degradação do colesterol e da excreção pela via dos ácidos biliares.
Dessa forma concluímos que, o uso combinado de uma dieta balanceada, e o auxilio de fármacos poderá resultar numa queda plasmática do colesterol de 50 a 60%, sendo q o individuo com hipercolesterolemia familiar deve ter um acompanhamento dietético desde a infância.

Pessoas com HF homozigótica têm sido tratadas com o transplante de fígado no sentido de mantê-las com uma fonte celular que contenha um gene funcional.
A HF homozigótica apresentada no relato de caso é uma condição rara (1:1000000 indivíduos), grave e de difícil tratamento. Crianças são acometidas com xantomas tendinosos gigantes e xantomas tuberosos subcutâneos em plantas de pés, fossas antecubitais, joelhos e mãos. Doenças coronarianas são comuns já na adolescência, não sendo infrequente a necessidade de revascularização miocárdica precoce.

Além do tratamento precoce e agressivo com estatinas e anti-lipemiantes, transplante hepático (tornando o fígado com receptores normais LDL) e bypass ileais são descritos na literatura como alternativas de tratamento.

Recentemente o FDA aprovou uso de Lomitapide (Inibição da proteína microssomal de transferência de triglicérides) e Mipomersen (inibidor do gene da Apolipoproteina B) para o tratamento de HF homozigótica abrindo um nova perspectiva no tratamento da HF.
Referências:

Krause - Alimentos, Nutrição & Dietoterapia

Hipercolesterolemia Familiar (HF)

A
hipercolesterolemia familiar (HF) é doença grave responsável por 5-10% dos casos de eventos cardiovasculares em pessoas abaixo de 50 anos. O risco de um portador de HF na forma heterozigótica não tratado de desenvolver doença coronária ou morrer chega a 50% nos homens e 12% das mulheres aos 50 anos de idade. Estima-se que, no mundo todo, existam mais de 10.000.000 de indivíduos portadores de HF; no entanto, menos de 10% destes têm diagnóstico conhecido de HF, e menos de 25% recebem tratamento hipolipemiante.No Brasil certamente não é diferente, diante da estimativa de que há 250.000-300.000 portadores dessa doença no país. Felizmente o diagnóstico precoce, a triagem em cascata das famílias, já que nessas um em cada 2 familiares pode ser afetado, podem mudar a história natural dessa grave enfermidade. Nós do Departamento de Aterosclerose da SBC temos como dever conscientizar a população, a classe médica e os governantes sobre a importância da HF para saúde do brasileiro e não medir esforços para controla-la de forma adequada. Devemos lembrar que com o fim das patentes de estatinas altamente eficazes em nosso pais o custo do tratamento precoce desses indivíduos certamente caiu de forma expressiva e será possível se realizar prevenção de maneira custo-eficaz. Entretanto para isso é necessário o diagnóstico precoce e acompanhamento constante. Essa diretriz reuniu os maiores especialistas em HF do Brasil , esperamos poder transmitir de forma sucinta as melhores informações disponíveis para melhora da prática médica no Brasil, para prevenção da doença cardiovascular precoce e finalmente alívio para as famílias afetadas pela HF.
Sinceramente,
Prof. Dr. Raul D. Santos Editor

1. História natural da hipercolesterolemia familiar
1.1. Definição de hipercolesterolemia familiar
A Hipercolesterolemia Familiar (HF) é uma doença genética do metabolismo das lipoproteínas cujo modo de herança é autossômico codominante e que se caracteriza por níveis muito elevados do colesterol da lipoproteína de baixa densidade (LDL-c), e pela presença de sinais clínicos característicos, como xantomas tendíneos e risco aumentado de doença arterial coronariana prematura1.
O fenótipo clínico de HF é geralmente decorrente de defeitos no gene LDLR, que codifica o receptor de LDL (LDL-R) (OMIM# 143890)2, sede de mais de 1.600 mutações descritas até o momento; pode também ser secundário a defeitos no gene APOB, que codifica a apolipoproteína B-100 (Apo B-100) (OMIM# 144010)3, onde a Apo B-100 defeituosa possui menor afinidade pelo LDL-R; ou ainda, quando existe catabolismo acelerado do LDL-R, devido a mutações com ganho de função no gene pró-proteína convertase subutilisina/ kexina tipo 9 (PCSK-9), que codifica a proteína NARC-1 (OMIM# 603776)4, que participa do catabolismo do LDL-R.
Todas essas condições são associadas a níveis elevados de LDL-c. O fenótipo clínico é muito semelhante entre as três formas mais comuns de HF, porém os defeitos do gene APOB são mais comuns entre algumas populações europeias (1:300 a 1:700 na Europa central)5, enquanto mutações do gene PCSK-9 não têm uma frequência estabelecida e são infrequentes em nosso meio. A HF possui penetrância de quase 100%, o que significa que a metade dos descendentes em primeiro grau de um indivíduo afetado serão portadores do defeito genético e irão apresentar níveis elevados de LDL-c desde o nascimento e ao longo de suas vidas, sendo homens e mulheres igualmente afetados. Os heterozigotos possuem metade dos receptores de LDL funcionantes.
1.2. História da HF
As primeiras observações sobre a doença foram feitas pelo patologista Harbitz6, que em meados do século XVIII relatou pela primeira vez casos de morte súbita em portadores de xantomas. Em 1938, Müller7 descreveu a HF como uma entidade clínica e observou que a associação de hipercolesterolemia, xantomas e manifestações de DAC eram achados comuns em algumas famílias e herdados como um traço dominante. Cerca de 50 anos mais tarde, Brown e Goldstein8-10, ao estudarem pacientes e culturas de células, elucidaram a complexa via da síntese endógena do colesterol e identificaram o defeito na internalização da LDL ligada ao seu receptor. Em 1983, esse gene foi clonado e mapeado no braço curto do cromossomo 1911, sendo denominado então gene do receptor da lipoproteína de baixa densidade, ou gene LDLR em 198912.
Mutações no gene LDLR reduzem o número ou comprometem a função dos LDL-R na superfície dos hepatócitos, resultando em elevações significativas dos níveis de LDL-c e ocasionando a deposição de colesterol nos tecidos. Na maioria dos casos, o modo de herança é autossômico dominante, mas pode ter modo de herança autossômico recessivo. As formas recessivas (muito raras) podem ser devidas a mutações no gene que codifica a proteína adaptadora do LDL-R (LDLRAP1)13,14, à deficiência de colesterol 7-alfa hidroxilase (CYP7A1)15, ou por defeitos nos transportadores ABCG5/G8, como ocorre na sitosterolemia16.
Entre as formas dominantes, Khachadurian1 observou uma relação dose-efeito com o número de alelos mutados e diferenciou as formas heterozigóticas das homozigóticas em indivíduos de origem libanesa acometidos por HF, pelo grau das manifestações clínicas.
O ponto de partida para se considerar a possibilidade diagnóstica de HF é a concentração de LDL-c >190 mg/dL em adultos17,18. Sinais clínicos, como a presença de algum grau de arco corneal, ocorre em 50% dos indivíduos com HF entre 31-35 anos. Já o arco corneal completo está presente em 50% dos portadores de HF aos 50 anos19. Não existe, no entanto, correlação entre o grau do arco corneal e as manifestações de DAC. Espessamento dos tendões ocorre em 63% dos portadores de HF; alterações na ecogenicidade dos tendões estão presentes em 90% dos portadores de HF; xantomas são detectados em 68% dos portadores de HF com mutações do gene LDLR20.
1.3. HF como problema de saúde mundial
A HF é uma das doenças monogênicas herdadas mais comuns na população geral. A frequência da HF na sua forma heterozigótica é de cerca de 1:500 indivíduos, sendo muito rara na forma homozigótica, onde se estima uma frequência de 1:1.000.000 de indivíduos afetados21. Entretanto, a HF é mais prevalente em algumas populações, devido a um efeito "fundador". Esses são os sul-africanos (1:100), libaneses (1:170), franco-canadenses (1:270) e finlandeses22-24.
A HF é um problema de saúde mundial reconhecido pela Organização Mundial de Saúde (OMS)25. Estima-se que no mundo todo existam mais de 10.000.000 de indivíduos portadores de HF; no entanto, menos de 10% desses têm diagnóstico conhecido de HF, e menos de 25% recebem tratamento hipolipemiante25. Um dado preocupante é a alta incidência de doença aterosclerótica prematura (em homens abaixo de 55 anos e em mulheres abaixo de 65 anos), especialmente à custa da Doença Arterial Coronariana (DAC) prematura, reduzindo a expectativa de vida em muitas famílias de portadores de HF26.
A HF é responsável por cerca de 5%-10% dos casos de DAC em indivíduos abaixo dos 55 anos27. Sem tratamento 50% dos homens heterozigotos desenvolverão DAC antes dos 50 anos e 100%, aos 70 anos; entre as mulheres heterozigóticas, 12% terão alguma manifestação de DAC aos 50 anos e 74%, aos 70 anos28. Cerca de 85% dos homens e 50% das mulheres com HF heterozigótica terão um evento cardiovascular antes dos 65 anos de idade. Entretanto, a expressão clínica da DAC em portadores de HF é heterogênea quanto à idade de aparecimento e sua gravidade. As manifestações de DAC tendem a se apresentar com maior frequência em algumas famílias, mas diferenças marcantes entre indivíduos podem ocorrer29, mesmo entre aqueles oriundos de famílias que possuem a mesma mutação no gene LDLR, sugerindo que fatores ambientais e outros fatores genéticos desempenhem um papel modulando o desenvolvimento de aterosclerose na HF30.
Estudos de seguimento de longo prazo em pacientes com HF mostram que a principal causa de morte entre os portadores de HF é a DAC26. Além disso, cerca de 200 mil mortes por DAC que ocorrem anualmente em todo o mundo poderiam ser evitadas com tratamento apropriado31. Acredita-se que o uso de hipolipemiantes possa aumentar a expectativa de vida desses indivíduos em 10-30 anos25.
Embora não existam grandes estudos clínicos de intervenção com hipolipemiantes com seguimento de longo prazo para análise de desfechos cardiovasculares em portadores de HF, alguns grupos utilizaram desfechos substitutos para avaliar a efetividade da redução de LDL-c na evolução da aterosclerose coronária, das lesões aórticas, do espessamento médio-intimal carotídeo, da função endotelial, modificações da cintilografia de perfusão miocárdica, ou de biomarcadores inflamatórios, demonstrando de modo geral, melhora nesses parâmetros com reduções expressivas do LDL-c revisto por Civeira17, em 2004. Consistente com esses achados, o uso crescente de fármacos hipolipemiantes, especialmente de estatinas, mostrou em uma corte seguida por 8,5 anos que o início precoce do tratamento hipolipemiante reduz em 80% o risco de DAC na HF e que, indivíduos acima de 55 anos com HF, que receberam tratamento hipolipemiante ao longo de suas vidas tiveram as mesmas taxas de infarto do miocárdio que seus pares da população geral sem HF, não se observando aumento de mortalidade por causa não cardiovascular relacionada ao tratamento hipolipemiante32. Outro estudo em uma corte de indivíduos sul-africanos com HF homozigótica demonstrou retardo na ocorrência de morte e maior sobrevida com a terapia hipolipemiante33.
Em crianças com HF, existe disfunção endotelial e aumento da espessura médio-intimal das artérias carótidas, preditor de aterosclerose prematura na vida adulta. O tratamento hipolipemiante por dois anos nas crianças portadoras de HF induziu regressão significativa na aterosclerose carotídea, sem afetar o crescimento, maturação sexual, níveis hormonais, enzimas hepáticas ou musculares34.
Pelas razões expostas, a identificação de indivíduos portadores de HF e de seus familiares, e a instituição precoce de terapia hipolipemiante e sua manutenção ao longo da vida são aspectos importantes na prevenção da doença cardiovascular prematura e do risco de morte nessa população.

2. Metabolismo lipídico na hipercolesterolemia familiar
A homeostase do colesterol no organismo depende do equilíbrio entre a síntese hepática e absorção intestinal desse composto, de um lado, e a sua excreção, especialmente pelas vias biliares, de outro. Quando há desequilíbrio dessa equação, como acontece na hipercolesterolemia familiar, o colesterol acumulado forma depósitos como os xantomas e placas de ateroma. A entrada e a saída do colesterol corpóreo são reguladas por sistema de feedback em que o aumento do conteúdo e absorção do colesterol da dieta determina a diminuição da síntese pelo fígado. Ao contrário das gorduras alimentares, que são absorvidas pelo intestino quase completamente, a absorção do colesterol é parcial, e quando a quantidade do composto na dieta aumenta, a absorção diminui proporcionalmente.
No homem, a maior parte do colesterol presente no plasma compõe a fração lipoproteína de baixa densidade (LDL). Em indivíduos normolipidêmicos, por volta de 70% do colesterol estão contidos nas LDL. As LDL são o produto de degradação das VLDL, lipoproteínas ricas em triglicérides que, na superfície dos capilares, sofrem lipólise continuada, pela ação da lipase lipoproteica. Nessa cascata de degradação, em paralelo com a perda dos triglicérides, o conteúdo de colesterol vai proporcionalmente aumentando nas partículas lipoproteicas até chegar ao produto final, as LDL. Nessa, o conteúdo de triglicérides é apenas residual e o colesterol, especialmente na forma esterificada, constitui a maior parte dos lipídios constituintes da lipoproteína.
Parte substancial dos produtos de degradação das VLDL, os remanescentes de VLDL e as IDL, lipoproteínas de densidade intermediária, é removida pelos tecidos antes de sofrer catabolismo completo, ou seja, antes de chegar ao produto final, as LDL. Uma proporção menor das LDL não é produto de degradação das VLDL, mas é sintetizada pelo fígado já em forma de LDL.
As LDL são removidas da circulação para o interior das células por receptores da membrana celular que reconhecem a apolipoproteína (apo) B100, a única proteína existente nas LDL. Remanescentes e IDL são removidos também por esses receptores, mas de forma bem mais rápida que a LDL. Isso se dá porque essas partículas, além da apo B100, têm apo E na superfície, e a apo E tem afinidade bem maior pelos receptores do que a apo B100.
Na hipercolesterolemia familiar ocorrem defeitos genéticos afetando o receptor da LDL e que resultam em diminuição da endocitose da lipoproteína17. A existência da endocitose da LDL mediada por receptor e os defeitos que resultam em deficiência da função dos receptores e em hipercolesterolemia foram descritas por Brown e Goldstein9 na década de 1970. As várias centenas de polimorfismos no gene do receptor podem afetar tanto a estrutura do receptor que liga a apo B100 da LDL quanto outros domínios da proteína e até mesmo a recirculação dos receptores que normalmente são reciclados após a endocitose, voltando à membrana celular. Defeitos na apo B100, bem mais raros do que os do receptor da LDL (LDL-R), também são causa de hipercolesterolemia grave, mas a designação hipercolesterolemia familiar refere-se aos defeitos do receptor3. Há também casos de hipercolesterolemia familiar em razão de mutações com ganho de função no gene pró-proteína convertase subutilisina/ kexina tipo 9 (PCSK-9)4, que codifica a proteína NARC-14, que participa do catabolismo do LDL-R. Assim descrita, a hipercolesterolemia familiar é um defeito de remoção das LDL da circulação. Como as partículas da LDL circulam por mais tempo nos pacientes com hipercolesterolemia familiar, estão mais sujeitas a oxidação e outras transformações químicas. Isso resulta na captação aumentada da LDL modificada pelos macrófagos, deflagrando mecanismos pró-aterogênicos.
Os estudos de Müller7, na Noruega, e Khachadurian1, do Líbano, na década de 1960, foram pioneiros para o estabelecimento da hipercolesterolemia familiar como doença de caráter autossômico monozigótico e dominante. Na forma heterozigótica, metade dos receptores está comprometida e a outra metade é normal, enquanto na forma homozigótica todos os receptores estão afetados.

3. Diagnóstico clínico da hipercolesterolemia familiar
Os critérios clínicos e laboratoriais para o diagnóstico da Hipercolesterolemia Familiar (HF) são arbitrários e baseiam-se nos seguintes dados:
• sinais clínicos de depósitos extravasculares de colesterol;
• taxas elevadas de LDL-c ou colesterol total no plasma;
• história familiar de hipercolesterolemia e/ou doença aterosclerótica prematura;
• identificação de mutações e polimorfismos genéticos que favoreçam o desenvolvimento da HF.
Alguns critérios diagnósticos têm sido propostos na tentativa de uniformizar e formalizar o diagnóstico de HF, como por exemplo, os da Dutch Lipid Clinic Network (Dutch MEDPED, ver tab. 1)35, os do US Make Early Diagnosis Prevent Early Death Program (USA MEDPED)36 e os do Simon Broome Register Group37.


Esta diretriz recomenda a utilização de critérios simples para a suspeita diagnóstica de HF e para a decisão de se iniciar o tratamento (ver adiante). Um algoritmo baseado no Dutch MEDPED35 pode ser empregado para melhor precisão diagnóstica, embora não esteja disponível até o momento uma validação para a população brasileira.
3.1. A anamnese
Dada a alta prevalência de HF na população geral e o seu grande impacto nas taxas de doença cardiovascular e mortalidade, toda a anamnese deve incluir a pesquisa de histórico familiar de hipercolesterolemia, uso de medicamentos hipolipemiantes e doença aterosclerótica prematura, incluindo a idade de acometimento.
A possibilidade de HF é sempre reforçada na presença de história familiar de hipercolesterolemia e/ou doença aterosclerótica prematura.
3.2. O exame físico
A pesquisa pelos sinais clínicos da HF (xantomas, xantelasmas e arco corneano) deve fazer parte do exame físico rotineiro e poderá ser complementada por exames subsidiários, como o ultrassom de tendão, em casos selecionados.
De uma forma geral, esses sinais clínicos não são muito sensíveis, mas podem ser bastante específicos. Ou seja, embora não haja necessidade de sua presença para o diagnóstico da HF, esses sinais, quando identificados, sugerem fortemente essa etiologia.
Os xantomas tendinosos (Figura 1 e Figura 2) são mais comumente observados no tendão de Aquiles e nos tendões extensores dos dedos, mas também podem ser encontrados nos tendões patelar e do tríceps. Eles devem ser pesquisados não só pela inspeção visual, mas também pela palpação. São praticamente patognomônicos de HF, mas ocorrem em menos de 50% dos casos38. Podem ser encontrados também xantomas planares intertriginosos, especialmente na HF forma homozigótica (Figura 2).




Os xantomas tuberosos amarelo-alaranjados e os xantelasmas de pálpebras não são específicos de HF e devem ser valorizados quando encontrados em pacientes com idade em torno de 20-25 anos.
A presença de arco corneano, parcial ou total, sugere HF quando observada antes dos 45 anos de idade (Fig. 3).


Portadores da forma homozigótica da HF podem apresentar também sopro sistólico ejetivo decorrente de estenose da valva aórtica e da região supra-aórtica.
3.3. O rastreamento e os níveis lipídicos
A coleta de sangue para determinação de níveis de colesterol total e LDL-c visando rastrear a HF é de fundamental importância para o diagnóstico do maior número possível de casos e, consequentemente, para reduzir o impacto da HF sobre a morbimortalidade cardiovascular na população geral. Esse rastreamento pode ser realizado por meio de dois métodos: o chamado rastreamento universal e o rastreamento em cascata.
3.3.1. Rastreamento universal
Todas as pessoas acima dos 10 anos de idade devem ser submetidas a análise do perfil lipídico. A obtenção dos lípides plasmáticos também deve ser considerada a partir dos 2 anos de idade nas seguintes situações:
• quando houver história familiar de doença aterosclerótica prematura (homens < 55 anos ou mulheres < 65 anos) e/ou de dislipidemia;
• se a própria criança apresentar xantomas ou arco corneano, fatores de risco (hipertensão arterial, diabete melito, fumo, obesidade) ou doença aterosclerótica.
A periodicidade recomendada para a determinação dos lípides plasmáticos é motivo de debate. De uma forma geral, se o perfil lipídico for normal, mas existirem outros critérios de possível HF, como história familiar de doença aterosclerótica precoce ou hipercolesterolemia significativa, o exame pode ser repetido após um ano. Na ausência desses fatores, o exame pode ser repetido em até cinco anos. Outros dados, como idade, presença de outros fatores de risco para aterosclerose, grau de controle dos fatores de risco, hábitos de vida e eventual uso de medicamentos que possam interferir com o metabolismo lipídico podem ser considerados para individualizar a periodicidade das dosagens lipídicas.
O diagnóstico de HF deve sempre ser suspeitado em adultos (> 20 anos) com valores de LDL-c > 190 mg/dL.
Na população geral, a probabilidade de HF é de aproximadamente 80% na presença de LDL-c > 250 mg/dL em indivíduos > 30 anos, ou LDL-colesterol > 220 mg/dL em indivíduos entre 20-29 anos, ou LDL-c > 190 mg/dL em indivíduos < 20 ano36.
O diagnóstico de HF é também mais provável em portadores de LDL-c > 190 mg/dL em famílias caracterizadas por uma distribuição bimodal do LDL-c, nas quais alguns membros apresentam níveis tipicamente baixos (LDL-c < 130 mg/dL), enquanto outros (os afetados por HF) apresentam taxas tipicamente > 190 mg/Dl38.
Antes de se fazer o diagnóstico de HF, no entanto, devem ser afastadas causas secundárias de hipercolesterolemia, incluindo hipotireoidismo e síndrome nefrótica.
Deve também ser ressaltado que a presença de hipertrigliceridemia não exclui o diagnóstico de HF.
Por fim, deve-se considerar que a determinação do perfil lipídico está sujeita a uma série de variações relacionadas tanto ao método e procedimentos utilizados como a fatores intrínsecos do indivíduo como estilo de vida, uso de medicações e doenças associadas. Dessa forma, a confirmação de uma alteração laboratorial com nova amostra, idealmente colhida com intervalo mínimo de uma semana após a primeira coleta, aumenta a precisão diagnóstica.
3.3.2. Rastreamento em cascata
O rastreamento em cascata envolve a determinação do perfil lipídico em todos os parentes de primeiro grau (pai, mãe e irmãos) dos pacientes diagnosticados como portadores de HF. As chances de identificação de outros portadores de HF a partir de um caso-índice são: 50% nos familiares de primeiro grau, 25% nos de segundo grau e 12,5% nos de terceiro grau38.
À medida que novos casos vão sendo identificados, novos parentes vão sendo recomendados para o rastreamento.
Essa é considerada a forma mais custo-eficaz para a identificação de portadores de HF
3.4. Recomendações*
• Sinais clínicos de HF e história familiar de doença aterosclerótica precoce e/ou dislipidemia devem ser pesquisados em todos os indivíduos (Classe I, Nível de evidência C).
• O perfil lipídico deve ser obtido em todos os indivíduos acima dos 10 anos de idade (Classe I, Nível de evidência C).
• A determinação do perfil lipídico deve ser considerada a partir dos 2 anos de idade na presença de fatores de risco, sinais clínicos de HF ou doença aterosclerótica, bem como na presença de história familiar de doença aterosclerótica prematura e/ou de dislipidemia (Classe I, Nível de evidência C).
• O perfil lipídico deve ser obtido em todos os parentes de primeiro grau dos indivíduos diagnosticados como portadores de HF (Classe I, Nível de evidência C).

4. Diagnóstico genético da hipercolesterolemia familiar
Classicamente, a Hipercolesterolemia Familiar (HF) foi descrita como doença de herança autossômica dominante1, caracterizada por elevação do colesterol total e do LDL-c, causada por mutações no gene que codifica o receptor da LDL ou nos genes codificadores da apo B e da pró-proteína convertase subtilisina/kexina 9 (PCSK9)4.
O defeito primário na hipercolesterolemia familiar é uma mutação no gene específico do receptor para LDL plasmático4. Localizado na superfície das células hepáticas e de outros órgãos, o receptor se liga ao LDL e facilita sua captação, realizada por endocitose mediada pelo próprio receptor. A LDL é degradada nos lisossomos e o colesterol é liberado na célula para uso metabólico. Quando os receptores de LDL são defeituosos, o nível de remoção de LDL do plasma diminui, e o nível plasmático de LDL aumenta em proporção inversa ao número de receptores funcionais presentes17.
Em pacientes heterozigotos, um gene defeituoso para o receptor de LDL é herdado de um dos pais e um gene normal, do outro. Como dois genes funcionais são necessários para manter o nível plasmático normal de LDL-c, a ausência de um gene funcional causa um aumento no nível de LDL para aproximadamente duas vezes o normal já na infância21.
Os pacientes homozigotos herdam dois genes defeituosos, consequentemente os receptores de LDL não têm funcionalidade e os pacientes têm uma hipercolesterolemia grave (650 a 1.000 mg/dL)21.
O gene que codifica o receptor humano para LDL compreende aproximadamente 45 mil pares de bases de DNA e se localiza no cromossomo 19. O gene está dividido em 18 éxons e 17 íntrons. Há uma forte correlação entre os domínios estruturais na proteína (receptor de LDL) e a sequência dos éxons no gene. O receptor de LDL é uma proteína composta de 839 aminoácidos, contendo vários domínios funcionais. A produção é finamente regulada por um mecanismo de retroalimentação sofisticado que controla a transcrição do gene LDLR em resposta a variações no conteúdo intracelular de esterois e da demanda celular de colesterol21.
Existem mais de 1.600 mutações do gene LDLR documentadas como causadoras de HF até o momento. Essas representam cerca de 85%-90% dos casos de HF. Um grande número de mutações no LDLR foi catalogado em todo o mundo e os recursos de listagem podem ser pesquisados39-41.
A HF é mais comumente atribuível a mutações (incluindo deleções, missense, nonsense e inserções) no geneLDLR, resultando em receptores de LDL com reduções funcionais (parcial a completa) em sua capacidade de remover LDL-c da circulação. Os pacientes podem ser receptor negativos, expressando pouca ou nenhuma atividade do receptor de LDL, ou receptor defeituoso, levando à expressão de isotipos de LDLR com afinidade reduzida para LDL na superfície dos hepatócitos42-47.
Há cinco principais classes de defeitos no gene LDLR45,46.
• Classe I: receptor de LDL não é sintetizado.
• Classe II: receptor de LDL não é devidamente transportado do retículo endoplasmático para o aparelho de Golgi e há menor expressão na superfície celular.
• Classe III: o receptor de LDL não se liga corretamente ao LDL na superfície da célula graças a um defeito em qualquer apolipoproteína (apo) B-100 (R3500Q) ou no receptor de LDL.
• Classe IV: proteínas transportadoras ligam-se normalmente à LDL, mas não se situam nas depressões revestidas e, portanto, a LDL não é internalizada.
• Classe V: o receptor de LDL não é reciclado de volta para a superfície celular.
A hipercolesterolemia devida à mutação no gene APOB é referida como Familial Defective apo B ou defeito familiar da apo B (FDB)48,49. A FDB é declaradamente menos grave do que a HF típica causada por mutações noLDLR50,51. A mutação mais comum no gene APOB é a substituição Arg35000Gln, correspondendo a 5%-10% dos casos de HF nas populações do norte da Europa, sendo, porém, rara em outras populações52.
Outra etiologia para o fenótipo HF é hipercolesterolemia autossômica dominante atribuível ao aumento da atividade de PCSK9, também chamada HF3, onde mutações com ganho de função levam a maior degradação do receptor de LDL52,53. Essa é a causa menos comum de HF, representando menos de 5% dos casos52.
O gene causal, se LDLR, APOB, ou PCSK954, não pode ser determinado clinicamente, sendo necessário teste genético para sua verificação.
Hipercolesterolemia autossômica recessiva (ARH) tem sido atribuída a expressão reduzida da proteína adaptadora do receptor de LDL tipo 1 (LDLRAP1), que facilita a associação de receptores de LDL com clatrina nas fendas revestidas da superfície celular13,55,56.
Outros formas raras de ARH incluem sitosterolemia ou fitosterolemia, em razão de mutações em dois genes adjacentes e com orientações opostas (ABCG5 e ABCG8) que codificam proteínas transportadoras da família ABC (ATP binding cassete) denominadas esterolina-1 e esterolina-257; deficiência de colesterol 7-alfa hidroxilase (CYP7A1), que é a enzima da primeira etapa na síntese de ácidos biliares, resultando em colesterol intra-hepático aumentado e expressão reduzida de receptores de LDL na superfície do hepatócito. A deficiência de CYP7A1 é a menos comum das condições autossômicas recessivas que podem causar graves hipercolesterolemias56.
O colesterol elevado hereditário pode incluir outras formas de hipercolesterolemia, tais como a disbetalipoproteinemia (tipo III de Friedrickson), hiperlipidemia familiar combinada, hipercolesterolemia por polimorfismos no gene APOE, bem como hipercolesterolemia poligênica, além de outras variantes em genes ainda não identificados, que podem mimetizar a HF58,59, mas que não são o foco desta Diretriz.
4.1. Metodologias para diagnóstico genético
Pelo grande número de mutações possíveis, o método de diagnóstico genético deve incluir o sequenciamento da região codificadora do gene LDLR, polimorfismos do gene APOB e PCSK960,61.
Sumariamente, para o estudo genético é efetuada coleta de sangue periférico em tubo contendo EDTA, obtendo-se o DNA genômico de leucócitos. As regiões de interesse do(s) gene(s) em estudo são amplificadas por meio da reação em cadeia da polimerase (PCR). Os produtos de amplificação obtidos pela PCR são analisados por meio de eletroforese e submetidos a digestão por enzimas de restrição, no caso da APOB e PCSK9, e comparados com sequências-padrão, ou sequenciados, no caso do gene LDLR.
4.2. Rastreamento em cascata
O rastreamento em cascata para HF geralmente não é necessário para diagnóstico ou tratamento clínico, mas pode ser útil quando o diagnóstico é incerto e para diagnóstico de familiares de um indivíduo afetado.
Identificação de uma mutação causal pode fornecer uma motivação adicional para alguns pacientes iniciarem o tratamento adequado, e o teste genético é padrão de referência para o diagnóstico de certeza de HF. Pode ser particularmente útil nos casos de familiares com diagnóstico clínico equivocado ou apenas com nível de LDL-c sugestivo de HF. Testes genéticos também podem ser importantes para a identificação de uma mutação causal em famílias recém-identificadas ou com forte suspeita de HF.
Além disso, quando encontrada a mutação, o teste fornece uma resposta simples e definitiva para o diagnóstico da HF, sendo assim ferramenta definitiva para a presença de hipercolesterolemia como traço familiar59.
Os testes genéticos, no entanto, têm limitações. Entre os pacientes hipercolesterolêmicos com diagnóstico de HF possível, a taxa de identificação de uma mutação causal por meio do teste genético é de 50% ou menos, enquanto em pacientes com HF definitiva, a taxa de identificação da mutação pode ser tão alta quanto 86%59,60.
É importante ressaltar que um teste genético negativo não exclui a HF. Além disso, indivíduos com LDL-c elevado permanecem em alto risco e devem ser tratados de acordo com diretrizes aceitas, independentemente dos resultados dos testes genéticos.
A estratégia mais custo-efetiva para diagnóstico de HF é o rastreamento de mutações em parentes de primeiro grau de indivíduos onde uma mutação causal para HF tenha sido identificada28,61. Os indivíduos diagnosticados como HF por meio de teste genético passam a ser os casos-índice, sendo a partir desses rastreados os parentes de primeiro grau, e subsequentemente os demais parentes (segundo e terceiro graus) numa abordagem genética combinada à análise do perfil lipídico dos familiares suspeitos e de uma anamnese dirigida e exame físico, pesquisando-se os achados clínicos típicos da HF (arco corneal precoce, xantomas tendíneos, xantelasmas). Isso é referido como rastreamento genético em cascata62. Pode-se, no entanto, como primeira abordagem, realizar o teste genético, onde se busca a mesma alteração do caso-índice. Há 50% de probabilidade de detecção em parentes de primeiro grau; 25% de probabilidade em parentes de segundo grau; e 12,5% de probabilidade em parentes de terceiro grau4.
Estudos mostram que muito poucos indivíduos com HF são diagnosticados. Em qualquer população, estima-se que aproximadamente 20% dos pacientes com HF são diagnosticados e menos de 10% dos pacientes com HF recebem tratamento adequado4. O rastreamento em cascata aumenta o número de diagnósticos e diminui a idade com que o indivíduo é diagnosticado, havendo maior chance de tratamento precoce e diminuição do risco cardiovascular global.
Marks e cols.28 analisaram a custo-efetividade do rastreamento em cascata de indivíduos com hipercolesterolemia familiar. Foi determinado o custo incrementado por ano de vida adquirida de £ 3.300 por vida/ano adquirido. Em outro estudo60, o resultado mostrou que o programa de rastreamento em cascata foi o mais custo-efetivo na Dinamarca e o custo por vida/ano foi de $ 8.700. Ambos os estudos mostram uma estimativa de custos menor que o gasto com prevenção secundária em indivíduos não portadores de HF61. Portanto, o rastreamento em cascata para indivíduos com HF pode ser considerado como altamente custo-efetivo28.
4.3. Recomendações
1. O diagnóstico genético (análise dos genes LDLR, APOB e PCSK9) é padrão de referência para diagnóstico de Hipercolesterolemia Familiar (HF), e, quando disponível, deve ser oferecido para pacientes com diagnóstico provável ou definitivo (certeza) para HF com o objetivo de viabilizar rastreamento familiar em cascata de maneira mais custo-efetiva. O oferecimento do teste genético para casos em que o diagnóstico de HF é possível deve ser analisado caso a caso62.
2. O melhor método para diagnóstico genético de HF é o sequenciamento da região codificadora do gene LDLR, e de hot-spots nos genes APOB e PCSK9, associado à pesquisa de microdeleções no gene LDLR em casos em que uma mutação não seja identificada. A realização do teste genético deve ser realizada por equipe especializada e oferecida dentro de um contexto de aconselhamento genético, compreendendo informações pré- e pós-teste e encaminhamento para tratamento específico.
3. O rastreamento em cascata é custo-efetivo e deve ser realizado em todos os pacientes e familiares em primeiro grau de pacientes com diagnóstico de HF. O rastreamento em cascata mais custo-efetivo é o que utiliza informação genética de indivíduos afetados, no qual uma mutação causadora da doença tenha sido identificada. No entanto, o rastreamento clínico/bioquímico deve ser realizado mesmo quando a realização de teste genético não é possível63,64.

5. Estratificação de risco cardiovascular
5.1. Epidemiologia do risco cardiovascular na HF
A associação entre Hipercolesterolemia Familiar (HF) heterozigótica e Doença Arterial Coronariana (DAC) está bem estabelecida65,66. Existe um risco cumulativo na ausência de terapia hipolipemiante de doença coronariana fatal e não fatal na proporção de 50% em homens de 50 anos, e de 30% em mulheres de 60 anos67,68. No estudo do Simon Broome Register Group69, realizado no período de 1980 até 1995, houve um aumento do risco relativo de morte por doença coronariana de 50 vezes para homens (intervalo de confiança 95% - IC95: 17-105) e de 125 vezes para mulheres (IC95: 15-140) na faixa etária de 20-39 anos69.
É importante enfatizar que mesmo com o advento das estatinas para diminuição do LDL-c, as taxas de eventos cardiovasculares em homens e mulheres portadores de HF sem manifestação prévia de doença coronariana nas faixas etárias dos 15 aos 66 anos de idade são, respectivamente, 3% e 1,6% ao ano70. No mesmo estudo, portadores de DAC estabelecida apresentaram taxas anuais médias de eventos cardiovasculares de 15% para os homens e 14% para as mulheres70.
As taxas anuais de mortalidade para portadores de DAC foram, respectivamente, 1,6% para homens e 0,5% para mulheres70. Apesar disso, o tratamento com estatinas em HF apresenta claros benefícios, como demonstra a coorte de HF estudada por Versmissen e cols.32, em que o grupo tratado com estatina apresentou uma redução de 76% do risco de doença coronariana, comparado ao grupo sem estatina ("hazard ratio" 0,24, p < 0,001). Contudo, é importante frisar que, a despeito dos níveis elevados de colesterol e elevado risco relativo de DAC, o comportamento clínico da aterosclerose nos pacientes com HF pode ser variável em curto-médio prazo, e alguns indivíduos desenvolvem eventos clínicos tardiamente em sua vida71.

Esse fato foi bem demonstrado na coorte de 526 portadores de HF do Simon Broome Register Group71, com 2.234 pessoas-ano de seguimento, onde foi observada maior taxa ajustada de mortalidade por DAC na faixa etária de 20-29 anos em comparação a faixas etárias mais velhas, ou seja, alguns HF apresentam evento coronariano muito precocemente e outros desenvolvem muito tardiamente ou mesmo não irão morrer de doença cardiovascular. Dessa forma, a estratificação de risco nessa população é muito importante, dada sua implicância em custo-benefício no manejo e tratamento desses pacientes17