INTRODUÇÃO
O conceito de cistite intersticial (CI), refere-se a um quadro clínico complexo, caracterizado principalmente por urgência, polaciúria e dor pélvica ou perineal. Atualmente, acredita-se que esta tríade clássica, represente apenas 5 a 10% dos casos mais avançados da síndrome da urgência e polaciúria.
Trata-se de uma condição de início incidioso e caráter progressivo. Na fase inicial é geralmente confundida com cistite bacteriana nas mulheres e com prostatite nos homens.
O denominador comum destes casos é a urgência miccional, polaciúria e eventualmente dor pélvica ou perineal, na ausência de infecção do trato urinário (ITU).
DEFINIÇÃO
Cistite intersticial é uma doença crônica da bexiga de etiologia desconhecida e de caráter inflamatório. A condição sine qua non para o diagnóstico da cistite intersticial é a presença de urgência, polaciúria e/ou cistalgia. A avaliação clínica destes pacientes deve excluir ITU, carcinoma vesical, cistite actínica e cistite medicamentosa. É provável que esta síndrome seja multifatorial na sua etiologia, porém a via final comum é a presença de urgência e polaciúria. A remissão espontânea e transitória (8 meses em média) ocorre em cerca de 50% dos casos.
EPIDEMIOLOGIA
Estima-se que haja nos Estados Unidos da América, 500.000 a 1 milhão de casos de CI, dos quais 90% são mulheres. A incidência anual é de 1,2 casos por 100.000 habitantes por ano e a prevalência é de 10 a 11 casos por 100.000 habitantes. Deste total, 10% experimentarão progressão da doença e 5% necessitarão de tratamento cirúrgico.
PATOGÊNESE
Desde a descrição da úlcera (vesical) de Hunner, pouco progresso foi feito na elucidação da etiologia da CI. Atualmente acredita-se que vários fatores participam da etiologia da CI, sendo a teoria mais aceita a da disfunção epitelial. Esta teoria sugere que uma lesão epitelial da bexiga alteraria a barreira hemato-urinária permitindo que pequenas moléculas e íons contidos na urina, se difundissem para o interstício da parede vesical, induzindo a despolarização dos nervos sensitivos da bexiga, produzindo um quadro de urgência, polaciúria e cistalgia.
A difusão do potássio em particular, seria a responsável pelo estímulo da inervação sensitiva da bexiga.
Outras teorias incluem a inflamatória, vasculogênica e deficiência da camada de glicoaminoglicanas que reveste o urotélio.
DIAGNÓSTICO
QUADRO CLÍNICO
O diagnóstico da CI é eminente clínico e de exclusão, como visto anteriormente. Para fins de pesquisa, o Instituto Nacional de Saúde norte-americano (NIH) propôs os seguintes critérios:
1. Inclusão automática: Úlcera de Hunner
2. Fatores Positivos:
• Dor à repleção vesical, aliviada pela micção
• Dor supra-púbica ou pélvica
• Glomerulações epiteliais após hidrodistensão (cistoscopia)
3. Fatores de exclusão:
• Capacidade vesical maior que 350 ml
• Ausência da urgência sensitiva na cistometria (100-150 ml)
• Contrações involuntárias do detrusor
• Duração dos sintomas inferior a 9 meses
• Ausência de noctúria
• Frequência miccional menor que 8 vezes ao dia
Embora bastante útil para fins protocolares e de pesquisa, apenas 30% dos pacientes com suspeita de CI preenchem estes quesitos.
O TESTE DE POTÁSSIO
O teste do potássio é um método simples de confirmação diagnóstica, feita no consultório em duas fases:
1. Nesta fase instila-se na bexiga 45 ml de água destilada por 3 a 5 minutos. O pequeno volume é para não causar sintomas pela distensão vesical. A instilação de água não deve ser dolorosa.
2. Na segunda fase, após o esvaziamento vesical, instila-se 20 mEq de cloreto de potássio (KCI) diluído em 10 ml de água destilada. Caso a paciente refira sintomas semelhantes aos habituais, o teste é positivo.
EXAME FÍSICO
O achado exame físico mais sugestivo de CI é a palpação dolorosa da região do trígono (parede anterior da vagina), durante o toque vaginal.
AVALIAÇÃO URODINÂMICA
A cistometria é um exame muito útil, pois caso seja normal, praticamente exclui CI. O achado característico é a urgência sensitiva, que em geral ocorre com menos de 150 ml de água. Além disso a capacidade cistométrica máxima encontra-se reduzida, geralmente menor que 350 ml de água (normal cerca de 500 ml), caracterizando quadro de hipersensibilidade vesical.
CISTOSCOPIA
A avaliação cistoscópica deve ser feita sob anestesia, pois a distensão vesical é muito dolorosa, sendo primariamente uma manobra terapêutica. A hidrodistensão deve ser feita com uma coluna de 80 cm de H2O e a capacidade vesical medida ao final do procedimento. A capacidade vesical média sob anestesia é de 1.150 ml nas mulheres normais e de 575 ml nas portadoras de CI.
A biópsia vesical após a hidrodistensão é útil para descartar carcinoma in situ vesical. A presença de mastócitos é sugestiva de CI, porém a ausência de mastócitos não exclui CI.
TRATAMENTO
Como toda afecção de etiologia desconhecida, o tratamento é empírico e a abordagem terapêutica deve ser individualizada para cada caso em particular.
TRATAMENTO MEDICAMENTOSO
O tratamento medicamentoso da CI pode ser dividido genericamente em três categorias:
1. Drogas neurotrópicas
2. Técnicas citodestrutivas
3. Técnicas citoprotetoras
1. DROGAS NEUROTRÓPICAS
Anti-depressivos
A dor crônica e o distúrbio do sono causam depressão secundária. Embora fatores emocionais possam agravar o quadro da CI, a psicoterapia não cura os sintomas, o que comprova que a depressão é secundária.
Recomenda-se a amitriptilina (Tryptanol) como droga de primeira linha, um anti-depressivo tricíclico, de ação eclética, muito útil no tratamento da CI. Esta droga possui ação bloqueadora dos receptores histaminérgicos H1, estabilizando a membrana dos mastócitos e também como alfa agonista, age principalmente nos receptores beta-adrenérgicos da bexiga, relaxando a musculatura do detrusor, facilitando portanto a função de reservatório da bexiga. Recomenda-se a dose inicial de 25 mg (1 comprimido) por dia, ao deitar, na primeira semana.
A imipramina (Tofranil) é outra droga igualmente útil, pois além da ação alfa agonista, melhora o humor das pacientes, fazendo com que se sintam melhores, ainda que a polaciúria melhore apenas discretamente.
Anti-histamínicos
Neste grupo destaca-se a hidroxizine, um anti-histamínico bloqueador dos receptores histaminérgicos H1, que além de estabilizar as membranas dos mastócitos, possui também propriedades sedativas e anestésicas.
Esta droga é facilmente manipulada no nosso meio, iniciando-se com 25 mg ao deitar e aumentando-se progressivamente até 75 mg ao dia. Como anti-histamínico clássico produz sonolência e aumento do apetite, que desaparecem no decorrer do tratamento em virtude da taquifilaxia.
Anti-colinérgicos
Os anti-colinérgicos de ação-muscarínica, agem na da sinapse pós ganglionar, relaxando a musculatura do detrusor e aumentando a capacidade funcional da bexiga.
São drogas especialmente úteis nos casos leves, nos quais a urgência e a polaciúria são as manifestações principais. Recomenda-se a Oxibutinina (Retemic) na dose de 5 mg três vezes ao dia e mais recentemente a Tolterodina (Detrusitol), 2 mg duas vezes ao dia, esta última com menos efeitos colaterais, principalmente a secura na boca.
2. TÉCNICAS CITODESTRUTIVAS
São métodos que destroem o epitélio de transição da bexiga, levando a uma regeneração que significa uma nova superfície vesical e portanto um período de remissão dos sintomas. Entretanto muitas pacientes experimentam um período de piora logo após o procedimento que desaparece após a regeneração epitelial.
Dentre estes métodos podemos citar as instilações intra vesicais de DMSO (dimetil-sulfóxido), Oxoclorosene de sódio (Clorpactin), nitrato de prata, recentemente o BCG e principalmente a hidrodistensão.
O tratamento mais utilizado nesta categoria é a hidrodistensão, previamente descrita e a instalação de DMSO. Utilizam-se 50 ml de DMSO a 50% em instilações vesicais 3 vezes por semana por 4 semanas, podendo ser repetido quando os sintomas reaparecem.
3. TÉCNICAS CITOPROTETORAS
Os procedimentos nesta categoria terapêutica, são basicamente os polissacarídeos, que recobrem o epitélio vesical, restabelecendo a camada de muco que recobre o epitélio de transição da bexiga. Neste grupo encontra-se a heparina, o polipentosanpolissulfato ou PPS (Elmiron), e experimentalmente o ácido hialurônico e agentes alcalinizantes urinários.
A heparina é utilizada em instilações vesicais na dose de 20.000 UI (2ml), diluída em 20 ml de soro fisiológico, diariamente por 3 meses nos casos mais graves, passando a intilações 3 vezes por semana após a melhora dos sintomas.
Nos casos de remissão dos sintomas, este tratamento pode ser realizado indefinidamente, a nível domiciliar como auto instilação. A via subcutânea é contra indicada pois leva a osteoporose em 100% dos casos após 26 semanas.
O PPS (Elmiron) é utilizado na dose de 100 mg por via oral, três vezes ao dia.
Trata-se de um polissacarídeo sulfatado que tem a vantagem da administração oral.
Embora apenas uma pequena parte da dose seja absorvida, a sua excreção urinária reforça a camada de muco que recobre a superfície da bexiga, protegendo-a das substâncias que agridem o epitélio vesical, principalmente os compostos quaternários de amônio. Este tratamento foi eficaz em 42% dos pacientes tratados, sendo necessários 3 a 12 meses para se obter o efeito terapêutico desejado.
Recomenda-se 2 comprimidos ao dia por 2 a 6 meses.
TRATAMENTO COMPORTAMENTAL
Nas formas crônicas de CI, independente da melhora da sintomatologia dolorosa que o tratamento medicamentoso possa oferecer, estes pacientes terão bexiga de pequena capacidade em função da urgência sensitiva.
Em estudos prospectivos e controlados, ficou demonstrado que mesmo com a resolução da sintomatologia dolorosa e da urgência miccional, a polaciúria persiste na maioria dos casos. A polaciúria nestes casos pode ser controlada utilizando-se tratamento funcional como treinamento vesical e a eletroestimulação endovaginal.
O treinamento vesical pode ser feito facilmente no consultório, sendo desejável a participação dos fisioterapeutas. A paciente é orientada para conter o desejo miccional e segurar a urina a fim de aumentar a capacidade funcional da bexiga. Deve-se inicialmente obter um diário miccional de 3 dias, no qual deve constar o volume de cada micção, bem como o intervalo miccional. Assim, se a paciente urina a cada 60 minutos, ela será obrigada a urinar a cada 75 minutos por 1 mês. Após este mês, o intervalo é aumentado em mais 15 minutos e assim sucessivamente. Ao final de 4 meses a capacidade vesical é duplicada, diminuindo portanto a polaciúria.
A eletroestimulação endovaginal e técnicas de bio-feedback, podem complementar o treinamento vesical e evitar o tratamento cirúrgico em muitos casos.
TRATAMENTO CIRÚRGICO
O tratamento cirúrgico deve ser utilizado apenas como último recurso, quando todas as alternativas descritas anteriormente falharam, visto que a CI não é uma entidade que coloca em risco a vida das pacientes. Os procedimentos cirúrgicos nestes casos podem ser as cistoplastias supratrigonais e as derivações urinárias.
A cistoplastia supratrigonal, isto é, aquela realizada com cistectomia supratrigonal e ampliação vesical com segmento intestinal destubularizado, está indicada nos casos de bexiga contraída, nos quais a bexiga perdeu a função de reservatório, em função da fibrose da parede vesical, o que leva a perda da complacência vesical. Os resultados a curto prazo são bons, porém a longo prazo são desapontadores. Dentre as derivações urinárias, o conduto ileal, deve ser a técnica de escolha, tendo em vista, a possibilidade de se desenvolver sintomatologia dolorosa nas derivações continentes.
CONCLUSÃO
É de fundamental importância discutir com as pacientes as possibilidades terapêuticas disponíveis e deixar claro que se os sintomas existem há mais de 1 ano, nenhum tratamento vai ser curativo. Devemos deixar bem claro que o caso em questão é de uma doença crônica e que portanto requer um tratamento também crônico. Mesmo quando ocorre a remissão dos sintomas, existe sempre a possibilidade de recorrência.
Desta maneira a relação médico-paciente é fortalecida, evitando a constante troca de médico e o eterno recomeçar do tratamento.
Franqueza, atenção e orientação realista, são fundamentais não apenas para a aderência ao tratamento, mas também para a credibilidade necessária que devemos ter para conduzir estas pacientes fragilizadas e emocionalmente instáveis.
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