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segunda-feira, 1 de março de 2010

MATERIAS CORREIO BRASILIENSE

CORREIO BRAZILIENSE – 28/02/10 Ao sabor da Justiça Portadores das chamadas doenças raras sofrem para conseguir atendimento, porque quase nenhum dos males é coberto pelo SUS. Sobrevivência costuma depender de ordens judiciais para que o tratamento seja garantido pelo governo

· Paloma Oliveto

Evandro Matheus/Esp. CB/D.A Press

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Nailde e Dhemerson: ela teve que parar de trabalhar para cuidar do filho e só conseguiu uma liminar na Justiça garantindo o tratamento em 2008

Eles são poucos ou muitos — dependendo da ótica de quem os enxerga. Para pacientes, médicos, amigos e familiares, é uma multidão de gente esquecida pelas políticas públicas, condenada a peregrinar por consultórios. Quando recebem o diagnóstico, é como se estivessem assinando um atestado de óbito. No Brasil, portadores de doenças raras estão excluídos do Sistema Único de Saúde e só conseguem tratamento adequado quando acionam a Justiça. Para os gestores, eles são tão poucos que, segundo a crítica de especialistas, parecem não merecer atenção básica. Os custos dos medicamentos, de acordo com os administradores públicos, são altos demais e poderiam ser usados para atender a um número significativo de vítimas de doenças mais comuns, como câncer e diabetes. A preocupação com essas pessoas é tão pouca no país que nem existe um levantamento oficial para determinar quantos pacientes são acometidos por males desconhecidos mesmo por profissionais da saúde. De acordo com a organização não governamental europeia Eurodis, formada por associações de portadores, no mundo todo cerca de 8% da população é vítima de alguma doença chamada rara. Na realidade brasileira, isso significaria mais de 15 milhões de habitantes, sofrendo de um dos 5 mil tipos de enfermidades reconhecidas pela Organização Mundial de Saúde. O número equivale a sete vezes a população do Distrito Federal. A própria definição de doença rara, cujo dia é lembrado internacionalmente hoje, é complexa. “Há vários contextos para defini-la. Quando se fala que é rara, em princípio se entende que a pessoa tem uma ocorrência que não é frequente. Mas estamos mudando um pouco esse entendimento. Na verdade, são condições que não são conhecidas”, afirma a neuropediatra Denize Bomfim, do Hospital Regional da Asa Sul e do Hospital Universitário, uma das maiores especialistas do assunto no Brasil. O número de portadores pode ser muito maior do que se imagina, já que, devido ao desconhecimento, essas doenças costumam ser subnotificadas. A médica lembra que, em um país onde há políticas e programas para doenças tidas como de alta incidência, como tuberculose, mal de Hansen, hipertensão arterial e diabetes, os gestores devem levar em consideração que, para o paciente, ele não tem uma doença rara ou não rara. “Ele tem uma doença que precisa ser bem diagnosticada, suas necessidades precisam ser atendidas e ele precisa ser tratado, independentemente de ter cura ou não para o mal”, diz. Caros e importados Por exigir muitos anos de pesquisa e serem voltados a uma parcela da população não tão numerosa, os remédios são caríssimos e, muitas vezes, precisam ser importados. Depois de passar por toda a agonia da busca pelo diagnóstico, o paciente e sua família têm de enfrentar, na fase seguinte, mais uma batalha. Poucos são os tratamentos para doenças raras incluídos na lista de alta complexidade do SUS. Para conseguir assistência, só mesmo acionando a Justiça. A advogada Maria Cecília de Oliveira, presidente da Associação dos Familiares, Amigos e Portadores de Doenças Graves (Afag), explica que o primeiro passo é enviar um pedido administrativo aos gestores, solicitando o atendimento. Como o documento é sempre negado, os advogados juntam laudos médicos e exames comprovando a doença e conseguem liminares na Justiça. A liminar nas mãos, porém, não garante o tratamento. “Os gestores desrespeitam as ordens judiciais”, denuncia Maria Cecília de Oliveira. A advogada pediu ao Ministério Público Federal que indicie o governo federal por crime de desobediência, porque existem liminares obtidas pela Afag que foram expedidas há mais de seis meses e não foram cumpridas. “O paciente morre por descaso total da burocracia estatal. Quanto mais tempo demora para cumprir a decisão, é menos dinheiro que eles gastam. Isso é vergonhoso e um crime hediondo”, diz. Segundo ela, a justificativa é de que o dinheiro para comprar os medicamentos de apenas um paciente daria para atender milhares de outras pessoas. “Isso é mentira. Sobra dinheiro no orçamento do Ministério da Saúde, e a vida não tem preço. É um desrespeito aos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, garantidos na Constituição.” Em 2010, a pasta terá R$ 66,9 bilhões, perdendo apenas para o Ministério da Fazenda. Sacrifícios Mãe de um portador de mucopolissacaridose 2, doença caracterizada por um erro inato do metabolismo, Nailde Pereira da Rocha, 37 anos, é um exemplo do que sofrem os familiares das vítimas de doenças raras. O filho, Dhemerson, 18, só foi diagnosticado um ano depois que seu sangue foi coletado. Os médicos apostaram que o menino só viveria até os 12. A infância de Dhemerson foi marcada por idas e vindas a hospitais por conta de crises. “É uma luta enorme”, diz Nailde, que parou de trabalhar para se dedicar ao filho 24 horas por dia. Foi por meio da Associação Paulista dos Familiares, Amigos e Portadores de Mucopolissacaridose (APMPS) que ela descobriu que podia acionar a Justiça. Em outubro de 2008, Dhemerson começou a receber o tratamento. Porém, chegou tarde. No mesmo ano, o rapaz foi internado na Unidade de Terapia Intensiva de um hospital público, onde ficou por 85 dias. Dhemerson foi para casa com uma traqueostomia que exige o uso de uma cânula especial. Na casa humilde onde mora, no Jardim Ingá (GO), Dhemerson precisa de cuidados o tempo todo. Nailde tem de trocar as fraldas, dar banho e medicamentos para o filho. Também precisa alimentá-lo, sendo que Dhemerson tem dificuldades para deglutir. Com uma pensão no valor de um salário mínimo, Nailde diz que depende da caridade alheia para cuidar do filho. A doença exige uma quantidade grande de material, como luvas esterilizadas e fraldas descartáveis, coisas que a mãe não conseguiu receber nem da Secretaria de Saúde do DF nem da de Goiás. A presidente da APMPS, Regina Procópio, acredita que é preciso mobilizar mais a sociedade para conseguir a atenção dos gestores públicos. “Já ouvi da assessora de um senador que, por sermos poucos, não valia a pena ‘mexer nisso’. Os políticos precisam de quem vote neles e acham que estamos em um número muito pequeno”, critica.

Sobra dinheiro no orçamento (...), e a vida não tem preço. É um desrespeito aos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, garantidos na Constituição”

Maria Cecília de Oliveira, presidente da Associação dos Familiares, Amigos e Portadores de Doenças Graves

“Sem respaldo científico” O Correio procurou o Ministério da Saúde na terça-feira, pedindo uma entrevista sobre o assunto, sem obter resposta. Voltou a acionar a assessoria de imprensa do órgão, mas, devido à agenda lotada, o secretário de Atenção à Saúde, Alberto Beltrame, não pôde atender a reportagem. A assessoria enviou uma nota, informando que “a elaboração de qualquer protocolo de atendimento pelo SUS — seja a inclusão de um novo medicamento ou vacina, de uma nova técnica cirúrgica ou de um tratamento para uma nova doença — requer estudos científicos que os respaldem. A maioria das ‘doenças raras’, até o momento estudadas, não possuem estudos que comprovem a eficácia e eficiência de métodos de diagnóstico ou tratamento”. Ainda de acordo com a nota, o ministério “está analisando aspectos técnicos e operacionais relacionados à Política Nacional de Atenção Integral em Genética Clínica, instituída em 2009. A intenção é garantir o funcionamento dos serviços de genética no país, conforme as normas de funcionamento e financiamento no Sistema Único de Saúde (SUS)”. A assessoria do órgão lembra que, desde 2001, “o Ministério da Saúde desenvolve o Programa Nacional de Triagem Neonatal, que oferece o diagnóstico de diversas doenças em recém-nascidos, entre as quais a fenilcetonúria, classificada como doença rara”, e que também os pacientes de Gaucher recebem assistência, sendo que, no ano passado, o investimento no atendimento a eles foi de R$ 130 milhões. Leia a íntegra da nota do Ministério da Saúde enviada ao Correio sobre o atendimento a portadores de doenças raras Documento esquecido

Edilson Rodrigues/CB/D.A Press

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Salmo Raskin critica a falta de acesso das pessoas a testes genéticos: esperança era a portaria engavetada

Das 5 mil doenças raras reconhecidas pela OMS, 85% têm origem genética e 75% atingem crianças. Por conta disso, os médicos especialistas nesses males depositaram esperança na Portaria nº 81/09 do Ministério da Saúde, que institui a Política Nacional de Atenção Integral em Genética Clínica SUS. O documento, que demorou quatro anos para ficar pronto, depende de outra portaria da Secretaria de Atenção à Saúde (SAS), especificando como será sua implantação, para sair do papel. Porém, passado um ano, isso não aconteceu. “Com muitos esforços, conseguimos que o então coordenador de Procedimentos de Média e Alta Complexidade do ministério, Joselito Pedrosa (hoje na Anvisa), pressionasse o ministro (José Gomes Temporão) para publicar a portaria. Não saiu e nem vai sair do papel”, lamenta o médico Salmo Raskin, presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica, que foi convidado pelo ministério, há cinco anos, para participar do grupo de trabalho que elaborou a portaria. “A coordenadora seguinte não fez absolutamente nada, alegando que o documento era falho. Ou seja, o Ministério da Saúde criticando um trabalho do próprio ministério”, conta Raskin, um dos mais respeitados geneticistas do país. Raskin lembra que, enquanto o grupo de trabalho estava avançado nas discussões, começou o estudo para incluir a cirurgia de mudança de sexo bancada pelo SUS. “Eles passaram na nossa frente e o procedimento foi aprovado. O pessoal que precisa de mudança de sexo faz barulho, coisa que nós, geneticistas, que somos apenas 200 no Brasil, não conseguimos fazer. Eles dão votos, a gente, não”, afirma. O médico também não aceita o argumento de falta de dinheiro. “As pessoas estão aí tendo filhos com doenças graves. Cento e cinquenta mil brasileiros não têm plano de saúde e simplesmente não têm acesso aos serviços de genética.” (PO)

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