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sexta-feira, 8 de abril de 2011

DOENÇAS RARAS DO FIGADO

Doenças raras do fígado

José Carlos Ferraz da Fonseca

Médico especialista em doenças do fígado (Hepatologia)


1. Cirrose biliar primária (CBP)

Descrita pela primeira vez em 1951, a cirrose biliar primária (CBP) é considerada uma doença hepática rara. Apesar do nome, a doença acomete essencialmente o fígado e não a vesícula biliar. Existem evidências de que a CBP está relacionada com fatores genéticos. Porém, estudos recentes sugerem que um retrovírus humano participaria do desenvolvimento da enfermidade. O uso de drogas antivirais no tratamento coadjuvante da CPB e, por sua vez, a melhora do quadro clínico e laboratorial reforçam tal hipótese.

Na maioria dos casos, a doença acomete pacientes do sexo feminino. O início dos sinais e sintomas ocorre entre 30 e 65 anos. Contudo, podem aparecer em mulheres adultas jovens, com menos de 20 anos ou mais de 90 anos de idade.

Em geral, durante anos ou décadas, a CBP não apresenta qualquer tipo de sinal ou sintoma, ou seja, é assintomática. Mais de 50% dos pacientes têm como primeiro sintoma a coceira (prurido). Em mulheres, a coceira pode se apresentar primeiramente durante a gravidez e, assim, ser confundida com um sintoma da própria gestação. Se após o período de gravidez houver permanência do sintoma, o diagnóstico de CBP pode ser considerado.

Em locais de clima quente e úmido, há piora da coceira, principalmente durante a noite. Alguns pacientes se coçam tanto que provocam lacerações sangrentas na pele e no couro cabeludo.

Atendi uma paciente que se coçava utilizando uma língua de pirarucu (peixe oriundo da região amazônica). Nativos da Amazônia usam a referida língua como ralador para o pau de guaraná.
Há ainda relatos de pacientes que se suicidaram em decorrência da coceira intensa.

Olhos e pele amarelados (icterícia) são sintomas tardios e revelam certa gravidade da doença. Em alguns enfermos, são observadas lesões protuberantes gordurosas sobre a superfície da pele, denominadas de xantelamas (principalmente nas pálpebras) e xantomas (nádegas, joelhos, cotovelos). O fígado (hepatomegalia) e o baço (esplenomegalia) também têm seu tamanho aumentado. Se o paciente apresentar quadro de barriga-d’água (ascite) e edema dos membros inferiores, pode-se afirmar que o fígado se encontra cirrótico.

O tempo de sobrevida dos pacientes com CBP varia entre 7 e 16 anos. Após o advento do transplante hepático, a sobrevida dos pacientes aumentou consideravelmente.

O diagnóstico da doença é bastante difícil para o clínico, contudo, a CBP deve ser considerada quando pacientes do sexo feminino apresentam coceira inexplicável, cansaço (fadiga), olhos amarelados, perda de peso e desconforto no quadrante superior direito do abdome. Níveis elevados de colesterol, gama-GT e fosfatase alcalina colaboram para que o clínico suspeite do diagnóstico da CBP – o qual deve ser confirmado com a biópsia hepática.

O tratamento da CBP é dirigido estritamente aos sintomas, principalmente em relação à coceira, pois não existe cura para a doença. O transplante hepático é o tratamento de escolha para os pacientes com CBP em grau avançado.


2. Doença de Wilson

A doença de Wilson foi descrita pela primeira vez em 1912, por Samuel Wilson. Mas somente em 1948 foi demonstrado o papel do metal cobre no desenvolvimento da doença, tendo-se em vista os elevados índices desse metal encontrados no tecido hepático e cerebral dos pacientes. Todos os sinais e sintomas identificados nos portadores da doença de Wilson ocorrem pela deposição do cobre em diversos órgãos do corpo humano.

Trata-se de uma enfermidade hereditária e de caráter genético. Sabe-se que a bile é a principal via de excreção do cobre do corpo humano. O cobre é um elemento indispensável ao organismo e provém dos alimentos ingeridos. Quando um indivíduo apresenta a doença de Wilson, a excreção do cobre pela vesícula biliar é bastante diminuída. Como grande parte do cobre não é excretada, ele se acumula no fígado e retorna para a circulação, sendo depositado também no cérebro, nos olhos, nas hemácias, nos rins e nos ossos. Todavia, as alterações mais comuns e importantes são hepáticas, neurológicas, oftalmológicas e hematológicas.

A alta concentração de cobre no fígado é capaz de provocar cirrose hepática. A doença se manifesta, geralmente, entre os 10 anos e os 30 anos de idade e pode ser diagnosticada como uma hepatite aguda. Durante anos, ela pode passar despercebida e, quando se exacerba, o paciente manifesta sinais e sintomas clássicos de cirrose hepática.

Todos os pacientes por mim diagnosticados como portadores da doença de Wilson na forma hepática se apresentaram, na primeira consulta, como portadores de cirrose hepática, até então sem causa definida.

O diagnóstico da doença de Wilson é realizado através de exames laboratoriais específicos (dosagem de cobre total no sangue, cobre urinário em 24 horas, dosagem da ceruloplasmina sanguínea), biópsia hepática e exame de fundo de olho. A tomografia computadorizada (TC) e a ressonância magnética do crânio têm sido utilizadas no diagnóstico das lesões cerebrais ocasionadas pelo depósito de cobre no cérebro.

Conforme descrito anteriormente, a doença de Wilson pode ocasionar as formas clínicas oftalmológicas, hematológicas, ósseas, renais, neurológicas e de manifestações psiquiátricas.
Pacientes portadores da doença de Wilson na forma hepática devem ser tratados durante todo o decorrer da sua vida e o transplante de fígado é a terapêutica extrema indicada.

3. Deficiência de alfa-1-antitripsina

A deficiência de alfa-1-antitripsina é uma doença de caráter genético, que afeta recém-nascidos, crianças e adultos. A carência dessa glicoproteína pode ocasionar problemas no pulmão e no fígado.

Com relação aos pulmões, observa-se um quadro evolutivo de enfisema pulmonar e sabe-se que os dois órgãos são comprometidos, principalmente as bases pulmonares. O quadro de enfisema surge, na maioria dos pacientes, na fase adulta, manifestando-se por obstrução respiratória e, após os 40 anos de idade, por falta de ar (dispneia).

O diagnóstico da deficiência de alfa-1-antitripsina é, comumente, efetuado por exclusão, diante da existência de doença hepática crônica de causa não conhecida. Em geral, quando os pacientes procuram um médico já apresentam sinais clínicos de cirrose hepática, tais como barriga d’água (ascite) e histórico de hemorragias digestivas por ruptura de varizes esofágicas.

O diagnóstico laboratorial da doença é feito através da dosagem de alfa-1-antitripsina no sangue – que, na ocorrência da doença, se apresenta reduzida. A biópsia hepática pode ser indicada para confirmação e estadiamento da doença.

Não existe tratamento específico para a doença hepática associada à deficiência de alfa-1-antitripsina. O transplante hepático é, atualmente, a alternativa mais procedente para os pacientes com doença hepática em fase bem avançada.

Na minha experiência clínica privada, atendi apenas dois pacientes portadores de deficiência de alfa-1-antitripsina, os quais foram transplantados e vivem muito bem. Um deles recebeu o transplante há mais de dez anos.


4. Colangite esclerosante primária (CEP)

A colangite esclerosante primária (CEP) é uma doença hepática crônica, caracterizada por inflamação e fibrose progressiva das vias biliares intra e extra-hepática. Diversos fatores são postulados como causadores da doença, todavia, entende-se que ela é ocasionada pelo sistema imune do paciente, ou seja, o organismo produz anticorpos que destroem as vias biliares.

Quanto ao quadro clínico da doença, a CEP acomete principalmente homens jovens, entre 30 e 40 anos de idade. Os sintomas mais frequentes são fadiga (70%) e coceira (65%). Podem ocorrer também febre e dor no quadrante superior direito do abdome.

Trata-se de uma doença progressiva, sendo que a sobrevida, em 5 anos, é de 72%. Após o diagnóstico, a sobrevida varia de 12 a 21 anos.

Os maiores problemas dos pacientes com CEP estão relacionados com o alto risco de desenvolverem carcinoma de cólon e colangiocarcinoma (tumor cancerígeno do fígado). Periodicamente, é indicada a colonoscopia, como método de diagnóstico precoce do câncer de cólon.

Até o presente momento, todas as tentativas de terapêutica se revelaram ineficazes na cura da CEP, tendo sido suficientes apenas para o controle da enfermidade. O transplante hepático é o tratamento de escolha para a CEP em fase terminal.Apenas um paciente integra a minha casuística e aguarda transplante hepático.

5. Síndrome de Budd-Chiari

O quadro clínico da síndrome de Budd-Chiari foi descrito, inicialmente, por Budd, em 1845, e o quadro histológico por Chiari, em 1849. A síndrome se caracteriza pela obstrução completa ou parcial das veias hepáticas, principalmente da veia cava inferior (93%).

Diversas situações levam à obstrução completa ou parcial do fluxo venoso do fígado. As principais são estado de hipercoagulação, ou seja, formação de coágulos de sangue nas veias hepáticas; insuficiência cardíaca direita; inflamação do pericárdio (membrana que envolve o coração); uso de estrógenos; uso de contraceptivos orais; gravidez e pós-parto; infecção crônica pelo vírus Epstein-Barr (mononucleose); pancreatite; tumores (mieloma múltiplo); câncer de fígado e rim; cisto hepático maciço (único); estreitamento das veias hepáticas após traumas (acidentes de trânsito, lutas marciais, quedas que lesionam a barriga, tiros, facadas).

A doença acomete homens e mulheres. Clinicamente, a síndrome de Budd-Chiari pode apresentar as seguintes formas: aguda ou fulminante e crônica.

Na forma aguda ou fulminante, o quadro é muito grave e se caracteriza por aparecimento súbito de barriga d’água e sinais clínicos e laboratoriais de insuficiência hepática.

Na doença crônica, as manifestações clínicas são inchaço dos membros inferiores (edema), fígado aumentado (hepatomegalia), dor abdominal (pode ser simplesmente a primeira manifestação da doença), pele e olhos amarelados (pequena incidência).

Geralmente, o diagnóstico da síndrome de Budd-Chiari é efetuado através de exames de imagem, sendo a ultrassonografia (US) abdominal com Doppler colorido o passo inicial.

O tratamento da doença pode ser clínico ou cirúrgico, mas o transplante hepático tem sido considerado uma boa opção no tratamento da síndrome de Budd-Chiari.


6. Hemocromatose hereditária

A hemocromatose é um distúrbio metabólico genético ocasionado pelo depósito excessivo de ferro em células de diversos órgãos do corpo humano, sendo o fígado o mais comprometido. O acúmulo de ferro no fígado ocasiona lesão nas suas células, provocando, portanto, prejuízo funcional grave.

O termo hemocromatose provém do grego haima (sangue) e chromatos (cor). Grande parte dos portadores da doença apresenta pele bronzeada, decorrente da deposição de pigmentos que contêm ferro.

O ferro é um dos elementos mais importantes para a vida do ser humano, pois é utilizado no transporte de oxigênio para as células. O excesso de ferro no organismo, por sua vez, pode levar a várias situações clínicas e as mais importantes estão relacionadas a facilitação de infecções bacterianas, prejuízo da resposta imunológica e celular do indivíduo, lesão celular do fígado e, consequentemente, fibrose.

No que diz respeito especificamente ao comprometimento hepático, a sobrecarga do depósito de ferro pode ocasionar um processo contínuo de agressão do fígado e, sendo assim, o paciente pode desenvolver cirrose hepática.

Nos pacientes cirróticos, a hemocromatose hereditária se caracteriza, clinicamente, por fígado aumentado (hepatomegalia), pigmentação cutânea da pele (cor bronzeada), baço aumentado, barriga d’água, olhos amarelados (icterícia) e edema dos membros inferiores. É comum os pacientes com hemocromatose hereditária se queixarem de artralgia, perda da libido e ausência de menstruação (no caso das mulheres). Mesmo tendo aparecimento tardio, portadores dessa síndrome apresentam sintomas clássicos do diabetes mellitus.

O diagnóstico é realizado através de exames de sangue e biópsia hepática. O tratamento da hemocromatose é essencialmente clínico e alguns pacientes precisam fazer flebotomias (sangrias venosas) semanais ou bissemanais. Diversas drogas são utilizadas na remoção do ferro do organismo. Recomenda-se a abstinência de álcool e fumo.

O transplante hepático em portadores da enfermidade revela resultados desanimadores, com elevada mortalidade pós-transplante. É comum o acúmulo de ferro também no fígado transplantado


O fígado e a doença dos pezinhos

José Carlos Ferraz da Fonseca

Especialista em doenças do fígado (Hepatologia)


Em 2007, tive contato clínico pela primeira vez com dois pacientes cosanguíneos, do sexo masculino, portadores da Polineuropatia Amiloidótica Familiar (PAF) ou doença dos pezinhos ou, ainda, doença de Andrade. Confesso que fiquei tenso durante a consulta, pois meus conhecimentos sobre a enfermidade eram apenas teóricos.

Tratava-se de dois irmãos, com pais originários do norte de Portugal. O paciente mais velho apresentava problemas neurológicos graves e o mais jovem, sinais iniciais da doença. O episódio mais triste da história da família foi o relato da morte da mãe, mais ou menos 10 anos antes, provavelmente, em decorrência da referida doença.

O motivo da consulta com os dois irmãos era o encaminhamento futuro para transplante hepático. Quanto à doença dos pezinhos, infelizmente, o papel do hepatologista clínico é apenas este, ou seja, o de encaminhamento.

É importante frisar que o fígado é apenas um dos órgãos responsáveis pela produção de uma proteína plasmática anômala, a transtirretina (TTR met 30), que causa a moléstia.

A doença dos pezinhos foi descrita pela primeira vez pelo notório neurologista português Dr. Mário Corino da Costa Andrade, em 1952. A enfermidade é conhecida também como a “Doença de Andrade”. Ao publicar sua descoberta, o cientista revelou as principais características da doença: comprometimento de núcleos familiares de origem portuguesa; caráter hereditário e altamente letal; paresias (perda parcial dos movimentos voluntários ou automático dos membros), particularmente das extremidades inferiores; diminuição precoce da sensibilidade à temperatura e à dor, começando e predominando nas extremidades inferiores; perturbações gastrointestinais; e perturbações sexuais (disfunção erétil) e dos esfíncteres.

A doença tem início, insidiosamente, quando o paciente tem entre 20 e 40 anos e conduz a um desfecho fatal após 10 a 15 anos de sofrimento.

Em países de colonização portuguesa, há relatos de milhares de casos da doença dos pezinhos. Nos Estados Unidos, país com percentuais de alta imigração portuguesa, é comum também o aparecimento da doença entre americanos nascidos de pais portugueses.

Qual seria o mecanismo de manifestação da doença? Normalmente, o fígado produz uma proteína denominada de transtirretina (TTR). Essa proteína é responsável pelo transporte, no plasma e no líquido cefalorraquidiano, da tiroxina (hormônio tireoidiano), dos lipídios e do retinol (vitamina A). Quando existe mutação no gene da proteína TTR, esta se torna instável e é responsável pelo depósito anômalo de uma substância fibrilar denominada de amiloide, sobretudo nos nervos. É o deposito da substância amiloide no tecido nervoso que ocasiona as formas graves da doença, como descreve o descobridor da Polineuropatia Amiloidótica Familiar. A substância amiloide impregna vários órgãos, principalmente os nervos periféricos, rins, coração, estômago e intestino delgado.

No estágio final da doença, o paciente se encontra deprimido, acamado ou numa cadeira de rodas e com escaras disseminadas. Apresenta ainda, de uma forma geral, fraqueza muscular, atrofias dos membros inferiores e superiores. Na maioria dos casos, caminha inexoravelmente para a morte por caquexia e/ou infecções intercorrentes.

Estudos experimentais da equipe da professora Maria João Saraiva, do Instituto de Biologia Molecular e Celular da Universidade do Porto, constataram que a administração, em ratos transgênicos, de um ácido biliar produzido naturalmente no organismo é capaz de reduzir em 75% a formação de fibras amiloides. É bom lembrar, novamente, que a deposição dessas fibras (amiloide) nos nervos periféricos é a origem da doença, que começa a se revelar pela perda da sensibilidade térmica e dolorosa nos membros inferiores, principalmente nos pés, daí o nome doença dos pezinhos.

Novas drogas estão sendo testadas no tratamento da enfermidade, todavia, o transplante de fígado – que permite a substituição do principal órgão produtor da proteína anômala – tem sido a forma mais usual de atenuação dos sintomas durante algum tempo. Porém, não elimina os danos já existentes nem impede o aparecimento de outros danos após o transplante.


Fonte 

Dr.Jose Carlos Ferraz da Fonseca

  • Professor, Pesquisador e Médico com especialização em Doenças do Fígado (Hepatologia). Autor e co-autor de dezenas de publicações científicas nacionais e internacionais. Autor de dois livros médicos e inúmeros capítulos de livros editados no Brasil e exterior.

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