http://www.scielo.br/pdf/rbp/v28s1/a03v28s1.pdf
Introdução
Definição de transtorno invasivo do desenvolvimento O
conceito atual de transtorno invasivo do desenvolvimento (TID) surgiu no final
dos anos 60, derivado especialmente dos
trabalhos de M. Rutter, I. Kolvin e D. Cohen. A mudança do título Journal of
Autism and Childhood Schizophrenia para Journal of Autism and Development
Disorders ao final dos anos 70, bem como a publicação do DSM-III, poderiam ser considerados
marcos fundamentais desse conceito.
Após relatos de casos esporádicos, tais como o do menino selvagem
de Aveyron, o termo psicose infantil foi introduzido no começo do século XX,
quando Heller descreveu uma apresentação clínica que se conhece atualmente como
transtorno desintegrativo. Apesar disso, a categoria, como um todo, somente ganhou
relevância nos anos 50, com a descrição do autismo por Leo Kanner. Até a CID-9, o autismo e a psicose desintegrativa
eram classificados como psicoses infantis. A recente nosografia baseada na
fenomenologia descritiva começou a ser aplicada a partir do DSM-III e CID-10.
O fenótipo proposto para o TID inclui manifestações em três
domínios: social, da comunicação e do comportamento.
A interação social está qualitativamente prejudicada, bem como
as habilidades de comunicação. O padrão de comportamento e os interesses são
limitados, tendendo a ser repetitivos e estereotipados. Atualmente, os pesquisadores
estão tentando olhar além do simples comportamento observável, por meio da busca de endofenótipos,
i.e. fenótipos internos constituídos por medidas bioquímicas,
neurofisiológicas, neuroanatômicas e neuropsicológicas. 1
No campo da pesquisa do TID, alguns endofenótipos têm sido
estudados, tais como os modelos da Teoria da Mente, o desempenho de coerência
central, a função executiva, as estratégias de varredura visual, entre outros.Esses
endofenótipos podem ser mais facilmente relacionados aos neurocircuitos e a
suas funções. Além disso, eles têm permitido estudos de genes candidatos.
É verdade que o progresso na área tem se apoiado
principalmente no desenvolvimento da neurociência; no entanto,a proposta de
novos modelos de compreensão, tais como o conceito de transtornos do espectro do autismo (TEA), foi também
extremamente importante. Para entender melhor o TEA, seria importante termos
melhores definições de todas
as categorias de TID. Hoje em dia, os protótipos de TID,transtorno
autista (TA) e síndrome de Asperger são bem conhecidos e duas categorias que
não se assemelham ao autismo, a síndrome de Rett e o transtorno desintegrativo, também
estão bem caracterizadas. A categoria residual é denominada TID-SOE (transtorno
invasivo de desenvolvimento
- sem outra especificação) e não possui critérios
específicos. A classificação de crianças que não se encaixam em nenhum outro
TID deve ser colocada nesta condição.
Categorias nosográficas
1. Síndrome de Rett Esse transtorno foi identificado em 1966
por Andréas Rett, 3
mas somente após o trabalho de Hagberg et al. 4 tornou-se mais
conhecido. Nesse mesmo trabalho foi proposto o epônimo síndrome de Rett (SR). A
descrição original de Rett enfatizava
a deterioração neuromotora, predominância em mulheres, sinais
e sintomas particulares, a presença de hiperamonemia, tendo sido denominada
“Atrofia Cerebral Associada à
Hiperamonemia”.
Sabe-se, hoje em dia, que a hiperamonemia não é um achado necessário
nem usual. A prevalência estimada de SR varia entre 1:10.000 e 1:15.000 em
meninas.
4 O diagnóstico clínico baseia-se nos critérios propostos
pelo Rett Syndrome Diagnostic Criteria Work Group 5 ou pelos que foram
definidos pelo DSM-IV-R.
1) Condição clínica A SR pode ser dividida em quatro etapas.
A primeira etapa, denominada estagnação precoce, começa entre os 6 e os 18 meses
e caracteriza-se pela estagnação do desenvolvimento, desaceleração do
crescimento do perímetro cefálico e tendência ao isolamento social. Esse
estágio dura alguns meses. A segunda etapa, denominada rapidamente destrutiva,
começa entre o primeiro e o terceiro ano de vida e dura de semanas a meses.
Nessa fase, uma clara regressão psicomotora é observada, da mesma forma como
choro
imotivado, irritabilidade, perda da fala adquirida,
comportamento autista e movimentos estereotipados das mãos, com a perda de sua
função práxica. Irregularidades respiratórias
(apnéia durante período de vigília e episódios de hiperventilação,
entre outras) e epilepsia podem estar presentes. A etapa subseqüente,
denominada pseudo-estacionária,ocorre entre os dois e dez anos de idade e
caracteriza-se por uma certa melhora em alguns dos sinais e sintomas,
particularmente no que diz respeito ao contato social. Do ponto de vista motor,
ataxia e apraxia, espasticidade, escoliose e bruxismo estão presentes.
Episódios de perda de fôlego, aerofagia, expulsão forçada de ar e saliva
ocorrem muito freqüentemente. A quarta etapa, a da deterioração motora tardia,
começa ao redor dos dez anos e se caracteriza por
uma lenta progressão de prejuízos motores, pela ocorrência de
escoliose e desvio cognitivo grave. Coreo-atetose, distonia e distúrbios dos
neurônios motores periféricos podem ocorrer.
Meninas capazes de caminhar independentemente apresentarão piora
das dificuldades de marcha e geralmente necessitarão de uma cadeira de rodas. 6
Ainda que os critérios diagnósticos aceitos hoje em dia sugiram que as crianças
com SR apresentam um desenvolvimento normal durante os primeiros anos de vida,
evidências atuais sugerem que existem sinais sutis de alguma anormalidade já em
uma idade bem precoce, incluindo retardo motor discreto, presença de hipotonia
muscular e outras alterações motoras.
Prejuízos graves da fala são a regra. De fato, a maioria
dessas crianças não falam; ainda que algumas delas adquiram alguma fala, perdem
essa habilidade na fase de regressão. Poucas meninas são capazes de falar, de
forma que essa forma de SR foi denominada SR com fala preservada. 7 A
ocorrência de epilepsia é freqüente e pode se apresentar
sob vários tipos de convulsão, que podem ser bem resistentes
à medicação. O eletroencefalograma apresenta registros normais nas fases
iniciais da enfermidade, mas se torna mais lentificado à medida que a condição
progride. Podem aparecer ondas agudas nas regiões centro-parietais. Mais adiante,
na fase 3, descargas em espícula-onda podem ocorrer e são mais facilmente
observáveis no registro durante o sono. Na etapa 4, pode haver uma melhora no
eletroencefalograma, com uma redução dos elementos epiletiformes.
A sobrevida na SR pode ser reduzida e a morte ocorre, em geral,
como resultado de causas infecciosas e complicações respiratórias,
possivelmente relacionadas à escoliose grave ou
durante o sono (morte súbita).
Transtornos invasivos do desenvolvimento não-autísticos S14
Rev Bras Psiquiatr. 2006;28(Supl I):S12-20 2) Genética A
maioria dos casos de SR é isolada e esporádica, com rara ocorrência na família.
No passado, o transtorno era considerado como uma doença dominante ligada ao cromossomo
X, letal para os homens, sendo exclusivamente
observada entre mulheres. Mais recentemente, poucos casos entre
homens foram relatados, ainda que com sinais atípicos e parciais da síndrome. Estudos
mais recentes indicam que
cerca de 75% a 80% dos pacientes com a forma clássica de SR
contêm mutações nesse gene.
7 O gene codifica a proteína MECP2, que opera como um
repressor global da transcrição.
Essa proteína atua em diferentes sites e as diferentes
mutações já identificadas poderiam ser responsáveis pelos vários padrões
fenotípicos que têm sido observados.
Sabemos, hoje, que os homens podem ser afetados por essa condição
em algumas circunstâncias: meninos que possuem comorbidade com a síndrome de
Klinefelter,
9 meninos que apresentam uma grave encefalopatia e em irmãos
de meninas
afetadas que nasceram com prejuízos neurológicos graves,tendo
geralmente morte precoce.
3) Patologia
Mesmo com a identificação do o gene, os mecanismos envolvidos
na SR ainda são desconhecidos. Reduções significativas no lobo frontal, no
núcleo caudato e no
mesencéfalo têm sido descritas e há algumas evidências de que
poderia haver uma deficiência pós-natal no desenvolvimento sináptico.
2. Transtorno desintegrativo da infância
O transtorno desintegrativo da infância (TDI) possui um
histórico mais longo do que o autismo. Foi inicialmente descrito por Heller, em
1908. Heller relatou seis casos de crianças
jovens que, após um desenvolvimento aparentemente normal nos
primeiros três a quatro anos de vida, apresentaram uma perda muito grave das
habilidades sociais e comunicativas.
Heller denominou a condição “dementia infantilis”. Essa
definição é insatisfatória: primeiro, porque a condição não é comparável à
demência, no sentido de que as características
de perda de memória e de habilidades executivas não são proeminentes;
e, em segundo lugar, porque nenhuma causa orgânica da trajetória do prejuízo
pode ser encontrada.
13 No DSM-III, a síndrome de Heller foi, pela primeira vez, introduzida
em um sistema de classificação psiquiátrica. Foi incluída sob a categoria
abrangente de TID, pois a perda das
habilidades sociais e comunicativas era muito proeminente.
14 No entanto, o TDI não é caracterizado em seu curso pela deterioração
continuada nem por nenhum progresso. Em outras palavras, após a regressão
dramática no início, chega-se
a um status quo, mas um tremendo impacto no desenvolvimento pode
ser observado durante toda a vida. O TDI é uma condição extremamente rara.
Fombonne revisou 32 pesquisas epidemiológicas sobre autismo e TDI.
O TDI foi mencionado somente em quatro estudos. A prevalência
da estimativa total nesses estudos foi de 1,7 por 100.000 (Intervalo de
Confiança 95%: 0,6-3,8 por 100.000). Os
diagnósticos diferenciais incluem os transtornos metabólicos
(e.g. mucopolisacaroidose San Filippo) e condições neurológicas (e.g. encefalite
por vírus lento 16 ou epilepsia), ainda
que, no último caso, a linguagem seja muito mais afetada do
que nos relatos de casos de TDI. Deve também ser diferenciado do autismo em que
se observa um desenvolvimento
próximo do normal nos primeiros um ou dois anos em
até 30% de todos os casos.
17 A etiologia ainda é desconhecida. Portanto, é possível
que o TDI esteja fadado a desaparecer como categoria quando os instrumentos
diagnósticos tornarem possível determinar as causas genéticas, metabólicas ou
infecciosas envolvidas nesses
casos ainda inexplicados.
Não existe tratamento para TDI. Como as complicações
neurológicas,
especialmente a epilepsia, são comuns e essas crianças
funcionam no nível de grave a profundo retardo mental, é necessário uma
abordagem multidisciplinar. Os pais
necessitarão de psicoeducação focada nessa condição. Na maioria
das vezes, quando os pais de crianças com TDI aderem a associações de pais de
crianças com autismo ficam
extremamente desapontados, pois o progresso visto em outras crianças
com transtornos do espectro do autismo não ocorre com seu filho.
Sabe-se pouco sobre o desfecho. O maior estudo de
acompanhamento foi realizado por Mouridsen, em 39 casos pareados com controles
autistas em um período de mais de
22 anos. Verificou-se que os indivíduos com TDI possuíam um
funcionamento global pior, estavam mais ausentes e tiveram uma grande
incidência de epilepsia como comorbidade.
Isso confirma a noção de que o desfecho no TDI é pior do que
nos transtornos do espectro autista em geral.
3. Transtornos invasivos do desenvolvimento sem outra especificação
(TID-SOE)
1) Definição de TID-SOE O TID-SOE é uma categoria
diagnóstica de exclusão e
não possui regras especificadas para sua aplicação. Alguém pode
ser classificado como portador de TID-SOE se preencher critérios no domínio
social e mais um dos dois outros
domínios (comunicação ou comportamento). Além disso, é possível
considerar a condição mesmo se a pessoa possuir menos do que seis sintomas no
total (o mínimo requerido
para o diagnóstico do autismo), ou idade de início maior do que
36 meses.
Se o acordo entre os clínicos é alto para os diagnósticos de
autismo, o mesmo não é verdadeiro no caso do TID-SOE.20 Ainda que os estudos
epidemiológicos tenham sugerido que o TID-SOE seja duas vezes mais comum do que
o TA, essa categoria continua a estar subinvestigada. Hoje em dia, diferentes S15
Mercadante MT et al.
Rev Bras Psiquiatr. 2006;28(Supl I):S12-20 categorizações
têm sido propostas, algumas baseadas no enfoque fenomenológico descritivo,
outras baseadas em outras
perspectivas teóricas, tais como a neuropsicologia.
2) Subcategorias propostas
a) Propostas de categorias baseadas em descrição clínica
i) Transtorno de desenvolvimento múltiplo e complexo Em
paralelo ao autismo clássico, quadros clínicos relacionados de transtornos de
desenvolvimento têm sido descritos
sob vários nomes, começando nos anos 40 do século passado. 21
Mesmo antes do estudo introdutório de Camberwell, estava claro que nem todas as crianças e adolescentes
eram arredias em seus contatos sociais. Foram descritos clinicamente
indivíduos especialmente passivos e arredios em seu engajamento
social. Esses indivíduos foram descritos com rótulos nosológicos como síndrome
de Asperger ou distúrbios
esquizóides da infância, dirigidos aos insistentemente solitários.
Por outro lado, foram descritos casos de crianças que
apresentam dificuldades sociais resultantes de um superenvolvimento unilateral.
Essas alterações de desenvolvimento
receberam nomes como casos borderline da infância,22-23
psicose simbiótica 24 e crianças esquizotípicas.
Essas condições
(caracterizadas por sensibilidade social prejudicada reminiscente
dos transtornos do espectro do autismo em combinação com graves problemas na
regulação dos afetos, especialmente
ansiedade e raiva e os déficits cognitivos na regulação da
imagens e dos pensamentos) emergiram como um grupo independente na análise de
agrupamento,
26 em uma grande série de casos bem documentados, examinados
na
unidade de desenvolvimento da Yale Child Study Center por Gesell
e Provence durante mais de 20 anos. O fato de ter sido encontrado esse grupo
diferenciado levou Cohen et al. a proporem
os transtornos de desenvolvimento multiplex como uma categoria
distinta dentro do DSM-IV, junto com o transtorno autístico e a síndrome de
Asperger.
27 O propósito não teve êxito no sentido de que o multiplex
(mais tarde transtorno de
desenvolvimento múltiplo e complexo - TDMC) não atingiu o limiar
para a inclusão no DSM-IV. Entretanto, nos últimos 20 anos, muitos estudos
deram suporte para a validade de face
e externa 28-31 dessa categoria que é amplamente reconhecida
na prática clínica.
32
As distorções cognitivas nomeadas na definição podem,
examinando-se mais de perto, refletir
déficits comunicativos mais do que características psicóticas
em crianças jovens.
33
As características clínicas do TDMC incluem: - Sensibilidade
social prejudicada
• Elas são unilaterais e pegajosas nos contatos com adultos e
crianças;
• São exclusivistas em seus relacionamentos e somente o aceitam
à sua maneira;
• Esses indivíduos possuem dificuldades em sintonizar de forma
empática com as necessidades dos demais. - Regulação prejudicada dos afetos
• A raiva transforma-se rapidamente em fúria;
• A ansiedade se transforma facilmente em pânico.
- Distorções cognitivas: transtorno do raciocínio
• Esses indivíduos ficam facilmente confusos;
• Deixam-se levar pelas suas vívidas fantasias de grandiosidade;
• Podem confundir fantasia e realidade;
• Tendem a ter uma lógica idiossincrática.
Muitas dessas crianças são diagnosticadas equivocadamente como
crianças com problemas de conduta ou Transtorno de Déficit de Atenção com
Hiperatividade (TDAH) combinado com
ansiedade. De fato, quase a metade das crianças com TDMC apresentam
comportamento hiperativo e, às vezes, graves características externalizadas e
internalizadas.
29
Somando-se ao TDAH grave, transtornos disruptivos e
transtornos de ansiedade combinados como descrito acima, os diagnósticos diferenciais
incluem a condição muito rara da
esquizofrenia infantil. Ao procurar crianças com
esquizofrenia infantil, a equipe do National Institute for Mental Health (NIMH)
encontrou que a maioria das crianças que foram encaminhadas não era psicótica,
mas apresentava problemas de desenvolvimento e foi descrita como tendo Prejuízo
Multidimensional (PM).
34
PM e TDMC são praticamente idênticos quando se examina mais
de perto os critérios.
35 Outra área de confusão é a categoria de transtorno
bipolar na infância que se tornou bem aceita recentemente.
36
A confusão aqui é que os episódios maníacos nessas crianças
são descritos como curtos e caracterizados em termos de irritabilidade e deixar-se
levar por fantasias, ao passo que não fica claro se essas crianças
desenvolverão transtorno bipolar na adolescência e na idade adulta.
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